Casos de importunação sexual aumentam quase 23% este ano em JF

De janeiro a julho foram registrados 59 casos, alcançando a marca total de casos de 2021


Por Mariana Floriano, sob supervisão de Fabíola Costa

17/11/2022 às 08h02- Atualizada 17/11/2022 às 08h05

Em Juiz de Fora, a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher funciona no segundo andar do Shopping Santa Cruz (Foto: Leonardo Costa)

Entre janeiro e setembro de 2022, os casos de importunação sexual aumentaram 23% em Juiz de Fora. Até o momento, foram registrados 59 episódios na cidade. No mesmo período do ano passado, o número de casos registrados havia sido 48. No geral, 2022 já alcançou a marca total de casos de 2021, visto que o último ano teve 59 crimes de importunação sexual registrados entre janeiro e dezembro, envolvendo 62 vítimas. Os dados foram cedidos à Tribuna pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp).

A Tribuna, só em 2022, publicou pelo menos oito matérias que descrevem casos no qual mulheres, e até crianças, são importunadas sexualmente em locais públicos, como no ônibus, na rua, ou até mesmo na saída da escola. O caso mais recente ocorreu no dia 24 de outubro, quando um homem foi denunciado por se masturbar perto de uma escola no Bairro Granbery, região central da cidade. As testemunhas chegaram a gravar um vídeo que circulou pela internet. Elas registraram o boletim de ocorrência, mas o suspeito não foi localizado.

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Só em ônibus urbanos, a Sejusp registrou três casos em 2022 e cinco casos ao longo do ano passado. Na Tribuna, foram quatro matérias neste ano, a mais recente, também no mês passado, no dia 13 de outubro, quando uma mulher, de 34 anos, sentou-se ao lado de um homem encapuzado e este começou a passar a mão na própria genitália e, posteriormente, a se esfregar nela.

Casos como esses causam revolta e não são isolados. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 30% das mulheres do mundo já sofreram algum tipo de agressão física ou sexual. As meninas adolescentes estão mais propensas a serem vítimas de estupro, tentativa de estupro, importunação ou agressão.

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Violência de gênero

A importunação sexual entra no rol das violências de gênero e é punível pela Lei 13.718 de 2018, que criminaliza atos libidinosos sem o consentimento da vítima, como toques inapropriados, por exemplo. A pena é de um a cinco anos de prisão. O crime não se restringe a um gênero específico, uma vez que tanto homens quanto mulheres, bem como pessoas não binárias podem praticar ou serem vítimas do ato de importunação sexual. No entanto, a grande maioria das vítimas é mulher. Dados da Sejusp apontam que, em Juiz de Fora, as mulheres foram vítimas em 87% dos casos registrados em 2022 – das 62 vítimas, 54 delas eram mulheres.

A professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Joana Machado, e coordenadora do Laboratório de Pesquisa e Assessoria Jurídica em Violências Institucionais e Direitos Humanos (LAVID), aponta que tais crimes estão intrinsecamente ligados à cultura do estupro enraizada na sociedade.

“A tipificação da importunação sexual como um crime se insere em um movimento de criminologia feminista, que reivindica diferentes abordagens, nomeações simbólicas a diferentes práticas da violência contra mulher, bem como adequadas respostas do Estado. É ambivalente apostar em criminalização para combater violência estrutural, mas há uma importante e crescente disputa pela mensagem simbólica das normas.”

De acordo com ela, a violência de gênero ocorre desde o estupro em si, quando há a conjunção carnal sem o consentimento da vítima, ao assédio, quando há constrangimento da pessoa com intuito de se obter vantagem ou favorecimento sexual, com uma relação prévia e hierárquica entre as partes. “Mas, fora esses, nós tínhamos outros casos que não passavam pelo radar das notificações. Casos no qual não havia uma abordagem física da vítima, mas que elas tinham seus corpos usados para o prazer, do próprio agente, ou de terceiros.”

‘Mulheres negras e mulheres brancas sofrem violências distintas. São corpos sobre o qual há menor preocupação ou registro social como vidas que importam’
Joana Machado,
professora da Faculdade de Direito da UFJF

Corpos vulneráveis

A tipificação desse tipo de crime, desde 2018, tem proporcionado uma coleta de dados mais eficaz ao Poder Público. A falta de dados, segundo Joana, dá impressão de que o crime é inexistente, ou muito pontual. “Caímos na ignorância de tratar o autor na chave da patologia, o enquadramos como um ‘monstro’, ou na da virtude, mas, depois que a gente tem acesso aos dados, vê-se que essa prática é muito mais recorrente do que se imagina e somos obrigados a pensar na questão estrutural do problema.”

Ainda segundo a professora, a busca por uma vítima mais vulnerável é um padrão observado neste tipo de crime. Há, na verdade, diferentes camadas de vulnerabilidade que tornam uma mulher mais propensa a uma abordagem violenta. “Mulheres negras e mulheres brancas sofrem violências distintas, além do recorte de classe e etário, por exemplo. São corpos sobre o qual há menor preocupação ou registro social como vidas que importam, vidas passíveis de luto, corpos considerados menos valorosos e isso acaba repercutindo nas violências.”

Segundo Joana, é preciso analisar se o aumento dos casos tem aspecto positivo – no caso da ampliação dos canais de denúncia, de políticas públicas de capacitação e sensibilização -, ou se, de fato, a cidade tem se tornado um ambiente mais hostil à mulher. “Nos últimos tempos temos visto as discussões de gênero, que representam acúmulo de campos de estudo, serem rebaixadas, alvo de fake news, de pânicos morais, ou estigmatizadas como pauta de costumes. Tudo isso enfraquece esse necessário debate e pode ter como consequência um aumento dessas práticas.”

É importante denunciar

A mulher que deseja denunciar um crime de violência sexual pode abrir um Boletim de Ocorrência (BO) pela Delegacia Virtual da Polícia Civil ou entrar em contato com o 180, número da Central de Atendimento à Mulher. Em Juiz de Fora, a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher atende esse tipo de caso e funciona no segundo andar do Shopping Santa Cruz, na Rua Jarbas de Lery Santos 1655, das 8h30 ao meio-dia e das 14h às 18h.

Conforme a delegada Danielle Alves, que atua na delegacia especializada, mesmo sem dados concretos é possível afirmar que os crimes de importunação sexual vivem uma crescente em Juiz de Fora. “Cada vez mais estamos atendendo mulheres vítimas de violência aqui na cidade, e de todos os tipos, desde violência doméstica a crimes de estupro.”

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De acordo com ela, no caso de crimes de importunação sexual, o aumento de denúncias tem ocorrido por conta de um maior conhecimento por parte das vítimas. “Ontem mesmo, nós recebemos uma denúncia de uma mulher que dizia ser importunada por um homem que toda vez que ela passava jogava beijo e colocava a mão nas partes íntimas. Alguns anos atrás ninguém denunciaria isso como um crime, mas é.”

Ela explica que crimes de importunação sexual são crimes por representação, ou seja, mesmo após o boletim de ocorrência, a vítima precisa procurar uma delegacia para dar prosseguimento ao caso. “Após fazer o boletim de ocorrência, a vítima precisa ir até uma delegacia da cidade, não necessariamente uma especializada, e assinar um Termo de Representação, deixando explícito o seu desejo de ver a punição do acusado ou do investigado com relação ao delito praticado.”

Danielle incentiva a denúncia e diz que é parte essencial para dar fim à cultura da impunidade. “Mesmo que muitos autores acabem sendo liberados, fazer a denúncia é necessário para que eles saibam que seus atos terão consequências perante a Justiça. Não é necessário nenhuma prova concreta para que a mulher abra uma ocorrência, no entanto é importante que a vítima busque meios de comprovar a materialidade do caso, seja através de uma testemunha, um vídeo de câmera de segurança, ou ‘prints’, por exemplo.”

Importunação pode causar trauma a vítima

A psicóloga e psicanalista Fátima Godoy afirma que esse tipo de abuso pode ser danoso do ponto de vista emocional e deixar traumas por muito tempo, caso não seja tratado em uma psicoterapia. “A invasão do nosso próprio corpo, da nossa autonomia e da nossa liberdade pode, sim, deixar sequelas como depressão, ansiedade, fobia social, estresse pós-traumático e traumas sexuais.”

A culpa, de acordo com a psicóloga, é a causa principal que afasta as mulheres da denúncia. A vítima da importunação pode acreditar que provocou a situação devido ao tipo de roupa que usa, por conta de algum comportamento, e permanecer em silêncio, até mesmo por medo de represálias do abusador.

O psicólogo e professor da Estácio Ernani Gomes afirma que a sensação de impunidade é um dos principais motivos que levam um homem a praticar crimes sexuais. “O que é agravado quando esse autor se encontra em uma posição de poder em relação à mulher, seja no mercado de trabalho ou em uma universidade, por exemplo.”

Nesses casos, a mulher pode levar um tempo até entender que aquele comportamento invasivo trata-se, na verdade, de um crime. “A importunação pode vir por meio de uma abordagem insistente, um toque indesejado, qualquer insinuação de cunho sexual que não seja correspondida e, mesmo com represálias, continuam a acontecer.”

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