‘O carnaval exige renovação’, defendem sambistas de Juiz de Fora
Os sambistas Coração e Yara Canuto acreditam que, para que o carnaval de Juiz de Fora volte a ser referência, é preciso renovar as escolas e, ao mesmo tempo, recuperar tradições
Paulo Cezar Calichio, o Coração, ficou emocionado quando leu o anúncio de que o carnaval de Juiz de Fora teria 82 blocos. “Eu vi um renascimento. Porque a escola de samba nasce de bloco. Você pode procurar: primeiro foi bloco, depois passou a ser escola. Por isso é um renascimento. Porque desses 82 blocos, pelo menos uns três ou quatro podem mudar e se tornar escola de samba.” A história do sambista, que há 46 anos faz parte do Bacharéis do Samba, é completamente atravessada pelo carnaval. E isso é de família, como de costume quando se trata do assunto, já que, geralmente, o gosto pela folia é tradição que se segue sem questionamento. No caso dele, o avô era presidente de rancho carnavalesco e acabou que todos os descendentes pegaram gosto – ele, inclusive.
E é mesmo um ciclo. Yara Canuto, por exemplo, cresceu ouvindo samba da vitrola de sua avó, que tinha os discos das escolas de samba do Rio de Janeiro todos. Nas quadras das agremiações de Juiz de Fora, ela tinha arquibancada cativa: ia para assistir sua mãe, que desfilava. Pela televisão, acompanhava a Mocidade Independente de Padre Miguel. “Sei todos os sambas deles. A gente ouvia de dezembro a fevereiro sem parar. No domingo, comprava o jornal para ler os sambas-enredos todos.”
Já Coração começou na escola de samba mirim Inocentes Somos Nós, bem novo, aos 5 anos de idade. Aos 16, já estava na reunião que deu como criada a Partido Alto, em 6 de novembro de 1967. “Eu só não assinei porque não tinha idade”, afirma. Na escola, ficou até 1980. Saiu porque, de acordo com ele, perdeu a essência. Ele acha que ela é perdida quando, por exemplo, muda seu reduto: a Partido Alto, que foi fruto do encontro de pessoas que moravam sobretudo próximo à Rua Redentor, no Paineiras, sem ter sede nem nada, hoje está localizada na Avenida Brasil. “Fazer isso é como eu dizer: ‘Amanhã mudo todos os meus amigos’. Existe isso?”. Coração acha que, com o tempo, as escolas viraram balcão de negócios. O que antes era, para ele, aula do que é o samba, não existe mais por aqui. “Larguei. E eu comecei a tocar no Bacharéis do Samba. Você tem que ter um desconfiômetro de algumas coisas: você é alguém em algum lugar até certo ponto. Uma das razões do carnaval ter ruído foi isso de não querer largar a presidência das escolas. O carnaval exige renovação. Renovação é tudo, em qualquer setor.”
Mas como acontece essa renovação? Yara responde: “Esse movimento de oficinas, tanto de ritmistas quanto de mestre-sala e porta-bandeira, de passista, tem que ter dentro da escola, para a escola não morrer. Tem um ciclo. Quando vai envelhecendo, perde o posto e vai passando para outros setores das escolas, e outras pessoas precisam substituir essa lacuna. Mas, para isso, você precisa saber como substituir. Por isso a importância dessas oficinas, dessa movimentação dentro das escolas de samba: manter a identidade da escola, manter o coração da escola. É não deixar o samba morrer”.
Levantar pelas oficinas
Yara, por exemplo, quando mais nova, ficava ali na arquibancada vidrada na bateria. Até que decidiu que queria também desfilar. Comprou, sem nunca ter tocado, um tamborim. Mesmo sem ir aos ensaios, pegou algumas dicas com o responsável pelo instrumento na escola Unidos do Ladeira. Em 1998, desfilou pela primeira vez. “E, de lá para cá, nunca mais parei de tocar.” Assim como aconteceu com ela, Yara entendeu que outras mulheres, que por tantos anos não foram vistas na ala das baterias, poderiam também querer aprender a tocar um instrumento. Em 2013, então, já dominando o tamborim, decidiu ministrar aulas dentro das escolas. Assim começou as Charmosas do Tamborim: que já teve muitas casas, mas sempre foi o reduto das mulheres no samba.
Anos depois, agora em 2023, a oficina virou bloco carnavalesco. Desfilou por Juiz de Fora no primeiro fim de semana de pré-carnaval. Foi um ano inteiro para colocar o bloco na rua. Um pedaço de uma bateria composta quase que majoritariamente por mulheres. “O carnaval precisa ser levantado de novo. Quando eu era nova, era diferente: as escolas ficavam movimentadas o ano todo. Tem presidente que é o mesmo desde quando eu era pequena. Não tem renovação. Por isso definha.”
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Recuperar costumes
O carnaval, todavia, não acaba, porque ainda tem seus guardiões. “Os sambistas antigos ainda perpetuam a tradição e o amor ao samba, e isso passa para a gente”, reflete Yara. “E a gente também vai passando para os mais novos, em rodas de samba, em oficinas.” São velhas tradições sendo recuperadas para que Juiz de Fora, de novo, tenha o carnaval que mora na cabeça de tanta gente e que os mais novos, no entanto, não conseguiram ver. “Antes, tinha noite de samba-enredo. Todas as escolas se reuniam para cantar o samba. Cada sábado em uma escola. E sempre lotava. Tinha concursos dentro de várias alas da escola. O carnaval iniciava normalmente em setembro. E só não tinha ensaio segunda-feira, porque era dia de reunião. Todos os outros dias havia ensaio”, lembra Coração. “Para ter escola de samba tem que ter disciplina e respeito, principalmente pelo lugar do outro.”
Mas ele acha que tem jeito. A começar pelo fato de que as escolas vão voltar a desfilar neste ano. Coração tem certeza de que, daqui a algum tempo, um desses 82 blocos vira escola de samba. Ele reconhece o esforço de retornar a tradição, mas acredita que é só um começo: ainda tem muito trabalho a ser feito. E é trabalho de formiguinha também. O que faz a chama se manter acesa é que Juiz de Fora é uma cidade com muitos grupos de samba. E ele relaciona isso diretamente a essa tradição de frequentar as escolas, de consumir os sambas-enredos que, antigamente, ficavam na boca do povo. Isso precisa voltar com os sambas de agora.
“O Bacharéis do Samba é fruto disso. E, acontecendo ou não o carnaval, a gente canta os sambas das escolas nas nossas apresentações. Tem esse trabalho de resgate para mostrar o que era e o que pode ser. No nosso próximo show (aconteceu no último sábado, 11), vamos homenagear as Charmosas do Tamborim, porque é importante reconhecer o esforço dessa nova geração em recuperar o nosso samba e voltar a tradição. É assim que vai para frente. Yara faz isso.”