Violência se descortina nas 801 vidas perdidas em seis anos

Na última reportagem da série, a Tribuna faz um mapeamento dos homicídios ocorridos desde 2012 no município, quando teve início a escalada da violência. A dor de quem perdeu familiares para o crime é lembrada. Especialistas fazem análises do quadro preocupante e apontam alternativas que vão além da repressão, que não tem sido capaz de arrefecer os números


Por Sandra Zanella e Marcos Araújo (colaborou Pedro Capetti, estagiário sob supervisão da editora Marise Baesso)

14/01/2018 às 07h00- Atualizada 15/01/2018 às 14h00

A violência urbana em Juiz de Fora tomou proporção devastadora e se descortina na perda de mais de 800 vidas para o crime nos últimos seis anos, 403 delas de jovens com até 25 anos. Apesar das centenas de mortes, muitas de pessoas que nem sequer conseguiram planejar um futuro, a cidade parece ter sucumbido à lógica dos grandes centros urbanos, onde a impessoalidade das relações e a correria do dia a dia tapam os olhos de seus habitantes diante da tragédia alheia. Mas a realidade precisa ser vista: só na Vila Olavo Costa, Zona Sudeste, 46 pessoas foram brutalmente executadas nesse período. O número equivale a um ônibus repleto de passageiros e, sim, é um desastre.

Se ampliarmos o raio de visão para as circunvizinhas vilas Ideal, Ozanan e o Bairro Furtado de Menezes, os óbitos entre os anos de 2012 a 2017 chegam a 86, ou a mais de um décimo dos homicídios do período em toda a cidade. Atrás da Olavo Costa, o São Benedito aparece como o segundo local mais violento nestes seis anos, com 32 crimes, e alcança 54 junto com Vila Alpina e Santa Cândida, situados bem próximos. Em seguida, Linhares tem 27 assassinatos e, aglutinado com Bom Jardim e Santa Rita, totaliza 56. Isolada, Benfica aparece na nona posição dos bairros mais sangrentos, mas o número é elevado a 47 com as Vilas Esperança I e II. Criado em 2012, o Residencial Parque das Águas, na Zona Norte, do programa Minha Casa, Minha Vida, desponta como umas das áreas mais alarmantes do período, se levarmos em conta sua pequena dimensão geográfica, com menos de 600 casas: 15 pessoas já foram assassinadas.

PUBLICIDADE

Na sétima e última reportagem da série “Vidas perdidas – um raio X dos homicídios em JF”, a Tribuna mapeia as mortes violentas desde 2012 – quando os homicídios dobraram e começaram a se multiplicar. O levantamento exclusivo foi realizado cuidadosamente ao longo dos anos, inclusive junto aos hospitais, pois muitas vítimas morrem dias e até meses depois de terem sido alvo de ações criminosas. Como a Polícia Militar contabiliza apenas os falecimentos ocorridos ainda durante os registros das ocorrências, o objetivo é apontar o quadro mais próximo do real. A evidência é que não se pode mais esperar para prevenir com medidas eficazes o aliciamento de inocentes pelo crime e para resgatar a juventude já imersa na violência que suga até o instante do tiro ou da morte. Como revigorar o sentimento de esperança como alternativa ao caos? Especialistas e autoridades ouvidos pela Tribuna nesta série apontam possíveis caminhos para uma cidade mais generosa em todos os sentidos, sobretudo com suas crianças e seus jovens.

Manchas vermelhas

Por trás das manchas vermelhas destacadas no mapa estão muitas lágrimas de famílias inteiras e também incontáveis falhas do Poder Público, várias delas históricas, que resultaram em crescimento urbano desordenado, desigualdade social, desemprego, baixo nível de escolaridade e um sistema penal que não ressocializa. A situação é agravada pelo tráfico cada vez mais armado, como comprova o fato de que 78% dos assassinatos foram provocados por armas de fogo, totalizando 629. Em 2017, o número de mortes a tiros atingiu seu ápice, representando 83% (114 casos), enquanto em 2012 o índice representava 66%, equivalente a 66 mortes.

Os homens disparadamente morreram mais (92%), e os jovens de até 25 anos correspondem à metade das vítimas, sendo que 311 tinham mais de 18 anos e outros 92 eram adolescentes. Em 37% dos casos, os crimes aconteceram em finais de semana. Apesar de ter sido ultrapassada pela Zona Leste no último ano, a Zona Norte lidera as mortes violentas entre 2012 e 2017, com 245 homicídios, enquanto a Sudeste ficou em segundo no triste ranking, com 175. Na análise dos seis anos, a Leste está em terceiro, com 161 óbitos. Com números bem menores, seguem as regiões Sul (67), Cidade Alta (56), Nordeste (53), Central (23) e Zona Rural (21).

Em 2017, o Centro apresentou o menor número de homicídios desde 2012, com um assassinato, mas totaliza 20 nos últimos seis anos. Na contramão, o São Benedito vivenciou, nos últimos 12 meses, a explosão no número de casos, com dez mortos.

Homicídios registrados desde 2012 (por região)
Fonte: Levantamento da Tribuna

“Quem é mãe nunca supera”

“Choro todos os dias. Parece que minha vida acabou. Estou vivendo por viver. Quem é mãe nunca supera”, desabafa a doméstica Vanderléia Ribeiro Silva, 46 anos, vítima de uma tragédia cuja dor é imensurável: seus dois filhos, Lucas Ribeiro da Silva, 17, e Elias Alves Ribeiro, 19, morreram abraçados, cruelmente executados com tiros na cabeça em plena manhã do dia 28 de julho de 2016 na Vila Ozanan, Zona Sudeste. Um amigo deles, 16, que também estava sentado na mesma escada de acesso a residências na Rua Aníbal de Paiva Garcia, foi baleado, mas conseguiu correr e sobreviveu. Na época, a Polícia Civil apurou que a ordem para matar um dos irmãos havia partido do Ceresp. O mandante, 26, já teria cinco passagens por homicídio. A sentença de morte teria sido emitida porque Lucas teria se recusado a deixar um ponto de drogas, no mesmo local onde foi assassinado. Ainda conforme a polícia, o suposto executor do duplo homicídio, 16, foi morto com seis tiros no dia seguinte ao crime por vingança na Vila Olavo Costa, na mesma região. O suspeito de matá-lo seria outro adolescente, 17.

Além de escancarar o tenebroso círculo de homicídios de jovens, o caso chocante demonstra o sofrimento daqueles que amam incondicionalmente, mas se veem de mãos atadas diante de uma realidade assustadora. “Eu estava trabalhando e, quando cheguei, não podia fazer mais nada. Não me conformo e sinto muita falta deles. Como pode uma maldade dessas?”, questiona Vanderléia. “Dói demais, a gente não esquece. Quero mudar daqui, porque sempre passo perto do local e tenho muitas lembranças dentro de casa”, diz a mãe, que tem uma filha, 17.

A doméstica conta que o pai de um dos jovens nem chegou a registrá-lo, enquanto o genitor do outro foi embora quando o filho ainda era pequeno. Com a responsabilidade de criá-los sozinha, a mulher não conseguiu que eles completassem o ensino fundamental. “Trabalhei em muitas casas, senão morriam de fome. Como fazer? Lucas só foi até a terceira ou quarta série. Ficou com medo de ir para a escola, porque estava sendo ameaçado. Eu falava para cuidarem das amizades, para não caírem nesse mundo. Elias já tinha melhorado. Eles até brigavam, mas um protegia o outro.” Para a doméstica, faltam atividades extra escolares para que jovens mais vulneráveis não morram como seus filhos. “Não quero que ninguém passe pelo que passei. É muito triste.”

Criminalidade não é exclusiva das classes populares

A filósofa alemã Hannah Arendt, uma das pensadoras mais importantes do século XX, defendia que era muito perigoso deixar um segmento social sem nada a perder, porque sem ter o que esperar, as pessoas podiam ser capazes de tudo. O pensamento filosófico dela sobre a política, o totalitarismo, a responsabilidade, a verdade, o mal, entre outros, até hoje dialogam com as ideias e as questões contemporâneas. Numa época em que a máxima “bandido bom é bandido morto” encontra eco nos mais variados discursos, o pensamento de Arendt é vital dentro da temática abordada pela série “Vidas Perdidas”. Quem traz a filósofa para essa discussão é o pesquisador e professor da Faculdade de Comunicação da UFJF, Wedencley Alves, que tem estudos na área de violência. “Se por muito menos a classe média que não é a maior vítima já prega a violência, por meio do discurso do ódio, como é que jovens que sabem que estão com os dias contados vão reagir de forma moderada”, dispara o professor.

Na concepção dele se faz necessário entender a noção de criminalidade como algo que não é exclusivo às classes populares, porque criminalidade tem a ver com crimes, que também podem ser de colarinho branco, sonegação de impostos, violência intencional no trânsito. “Imagina se um jovem bem-sucedido que aprendeu a sonegar impostos é tido como envolvido com a criminalidade? Sim, ele está, mas não é visto assim. Da mesma forma que um rapaz que leva ecstasy para a festa com os amigos, o que seria tráfico de drogas, não é visto dessa forma. Então, é preciso desmistificar a ideia de que a criminalidade é somente aquela que tem a ver com o pobre. Ela tem a ver com qualquer tipo de crime”, ressalta Wedencley.

Outro ponto fundamental para o qual é preciso se atentar na visão do professor é que existem níveis de criminalidade. Uma coisa é alguém que pega em arma para matar, outra é um indivíduo que atua como “fogueteiro” no tráfico de drogas. “É preciso perceber que, dentro dos níveis de criminalidade, existem várias atividades distintas e que devem ser consideradas. Boa parte dos nossos presos, por exemplo, são jovens que eram aviãozinhos, e eles são jogados lá, não há julgamento, e isso só vai produzindo um ciclo absolutamente desesperador e fomentador da violência”, avalia.

Wedencley acredita que, para minimizar a violência, é preciso investir numa cultura de paz. “Para isso é preciso o apoio da população, criação de políticas públicas. Para o governador de estado, por exemplo, espera-se que ele passe por uma política de responsabilização. Ele é o comandante e o chefe das polícias e tem que ser chamado a colocar metas de redução de violência do estado, que é um grande fator de fomento à violência que vem dos jovens. Os estados que matam mais têm, consequentemente, sociedades que matam mais”.

Especialista destaca o insucesso do aumento da repressão

Com um trabalho desenvolvido junto a adolescentes e jovens há mais de dez anos em Juiz de Fora, a professora de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da UFJF e coordenadora do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais (NEPCrim), Ellen Rodrigues, defende que a melhora desse cenário pode vir pelo emprego em investimento em ações afirmativas.

“Se quisermos outros resultados, temos que fazer novas escolhas. A opção pelo aumento da repressão e baixos investimos em educação, lazer e oportunidades de trabalho vem mostrando claramente seu insucesso. Até quando os poderes públicos vão investir neste modelo? Até quando a sociedade vai compactuar com isso? O artigo 227 da Constituição Federal dispõe que é “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

O conteúdo continua após o anúncio

Para a professora Ellen, “quando um adolescente descumpre uma lei, o Estado e a sociedade cobram dele este descumprimento, sujeitando-lhe à maior repressão e punição. E, quando o Estado, a Família e a Sociedade não cumprem os deverem impostos pela Constituição para com os adolescentes, quem os cobrará? Certamente não é desejando que os jovens pobres e negros se matem entre si que estaremos colaborando”. Ellen é uma das coordenadoras do projeto “Além da Culpa: Justiça Restaurativa para Adolescentes”, que atingiu, por meio de suas intervenções entre 2015 e 2016, 652 pessoas nos procedimentos de apuração de ato infracional e 595 pessoas nos de execução de medidas e reinserção familiar, totalizando 1.247 beneficiados afetados diretamente pelas ações restaurativas. O “Além da Culpa” foi tema da quinta reportagem da série “Vidas Perdidas”, publicada na última sexta-feira (12).

“JF tem jeito?”

Em seis anos, mais de 800 vidas foram perdidas, em Juiz de Fora, para a violência. O acúmulo é estarrecedor, principalmente, quando se constata que cerca de 400 assassinados são jovens com até 25 anos de idade. Com a série “Vidas Perdidas – um Raio X dos homicídios em Juiz de Fora”, a Tribuna objetiva mostrar que a violência não é apenas uma questão de polícia e que precisa ser debatida e combatida por vários segmentos. Para tanto, se faz fundamental provocar a sociedade, chamá-la a sua responsabilidade, numa tentativa de encontrar caminhos para traçar um futuro que possa partir de uma cultura de paz.

Conheça a metodologia por trás do levantamento da Tribuna

 

Outras matérias da série:

JF vive epidemia com 24,3 homicídios por cem mil habitantes

Retirar os jovens do crime ‘enquanto é tempo’

Crack aparece em 80% dos processos de homicídio

Testemunhas veladas ajudam a elucidar homicídios

PM aponta envolvimento de parte das vítimas de homicídios em 825 crimes

JF perde 137 vidas em 2017 para o crime, cerca de 90% ligados ao tráfico

 

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.