População surda ainda é marginalizada na educação
Apesar de a Lei 10.436, de 24 de abril de 2002, instituir a língua brasileira de sinais como segundo idioma oficial brasileiro, quase não há práticas que legitimem o que diz a legislação
Estudei com a Natália durante o Ensino Médio, puxado, vestibularista, cheio de aulas extras e plantões e em uma escola particular. Como eu, ela estudava sem qualquer atenção especial dos professores, fofocava com as amigas, ia a festinhas e fazia atividades extracurriculares, como balé e esportes. Mas Natália Melo, hoje com 33 anos, é surda, e, apesar de ter realizado um implante coclear quando mais jovem, consegue distinguir apenas alguns ruídos, mas não as palavras. Por trás da menina na carteira ao lado, havia todo um universo que eu desconhecia, já que, em minha cabeça, “apesar das dificuldades”, ela fazia todas as mesmas coisas que eu. “Comecei a fonoaudiologia quando eu tinha 1 ano, até 25 anos. Aprendi a falar, a escrever e a ler lábios, e não era fácil. Não sabia e ainda não sei Libras. Quando criança, a fonoaudióloga não queria que eu aprendesse, e minhas amigas também não sabiam. Aprendi a ler português, mas nunca gostei e acho difícil até hoje. Tenho muita dificuldade com vocabulário, pois o meu é muito restrito. Hoje quero aprender Libras porque muitas pessoas sabem”, contou-me a ex-colega de escola pelo WhatsApp.
Como a profissional de fonoaudiologia que acompanhou minha amiga, grande parte da sociedade e mesmo das iniciativas de inclusão de pessoas surdas e/ou com alguma deficiência auditiva impõe uma barreira fundamental à socialização, inserção e educação desta população: o não reconhecimento de Libras, a língua de sinais, como um idioma, a língua materna de quem não ouve. Apesar de a Lei 10.436, de 24 de abril de 2002, instituir a língua brasileira de sinais como segundo idioma oficial brasileiro, quase não há práticas que legitimem o que diz a legislação. A Natália, mesmo sendo de classe média e contando com uma rede de apoio, afeto e assistência familiar e de amigos, teve negado o direito a se desenvolver em um idioma que lhe permitisse ter mais autonomia durante a vida escolar e permitisse uma inserção cultural na comunidade surda. Para quem tem surdez e domina a língua dos sinais, o exercício deste direito também é negado ou, no mínimo, cerceado.
“Uma criança surda entra numa escola em que a língua que se fala não é a dela, o professor não sabe se comunicar com ela, e o processo de aquisição de linguagem é deteriorado. Um ouvinte começa a educação aprendendo conteúdos de outras disciplinas e aprendendo também sua primeira língua, a portuguesa. O surdo tem sua instrução em português, que é sua segunda língua, e não tem chance de se aprimorar na primeira, Libras. É uma exclusão em todos os sentidos”, diz Gabriel Martins, mestre em diversidade e inclusão.
Barreiras no caminho
O estudante de Letras com licenciatura em Libras da UFJF Eliandro Feliz, de 37 anos, lamenta, apesar de ter muito orgulho, que seu caminho até o ensino superior tenha sido marcado por tantas lutas solitárias. “Desde os 8 anos, tentei aprender a ler e escrever, ingressar em uma escola, mas elas não aceitavam surdos. Consegui estudar aos 21 anos, me formei no ensino fundamental aos 28, fiz um supletivo particular e concluí o ensino médio. Só que precisei pagar por toda esta formação, porque o Governo não consegue fazer o surdo ser aceito no processo inclusivo, pelo menos não antes da Lei de Libras. Depois dela, consegui fazer faculdade, sou formado em logística, e tenho muito orgulho de ser surdo e ter tido um reconhecimento de capacidade igual ao de pessoas ouvintes”, diz ele, com o intermédio de Gabriel Martins como intérprete.
‘O surdo como sujeito na educação’
No último fim de semana, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) colocou a discussão do ensino para a população surda em pauta, tendo como tema de sua redação “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”. A escolha dividiu opiniões, apesar de especialistas e surdos reconhecerem a importância de o debate ter sido levantado em todo o país. “Fiquei feliz com a escolha, porque mostra que a sociedade precisa se abrir para entender que a educação dos surdos é diferente. Os conteúdos precisam ter estratégias e didáticas específicas para que estes alunos tenham a chance de uma formação”, avalia Eliandro, com tradução para português de Gabriel. “É o caminho para um ensino que fale nossa língua”, completa ele.
Gabriel acrescenta, apesar de valorizar a visibilidade que ganhou o tema, que o debate precisa se aprofundar. “No frisson do exame, todo mundo está discutindo o assunto, mas e depois? O MEC vai continuar investindo e apoiando a formação de professores para o ensino de surdos?” Para o especialista, a videoprova traduzida em Libras, disponibilizada pela primeira vez em 2017 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pelo Enem, tem muito mais representatividade no que diz respeito à inclusão. “Isso é acesso de fato. Pela primeira vez, os candidatos surdos fizeram um exame de nível nacional em sua própria língua, como sempre fizeram os ouvintes.” Segundo dados do Inep, nesta edição do teste, cerca de seis mil alunos com surdez ou deficiência auditiva fizeram a primeira fase.
Na visão de Gabriel, a defasagem na formação de docentes é um dos principais agravantes para que o sistema educacional seja tão excludente para os surdos. “Trabalho no ensino superior e nos cursos de licenciatura. Os futuros professores têm uma disciplina voltada para educação e diversidade e uma de língua de sinais, com apenas 36 horas. Em 36 horas, não se aprende um idioma, não se busca compreender quem é o sujeito surdo no processo educativo e que necessidades e especificidades ele tem, algo que é fundamental. Essa lógica vem da educação de base. Não se discute diversidade com nossas crianças. O professor é podado o tempo todo para discutir qualquer coisa que fuja à norma, e a surdez se enquadra aí, junto com outras deficiências, condições sociais, de gênero e outras.”
Pais ouvintes devem aprender Libras muito cedo
O especialista Gabriel Martins, um dos organizadores do livro “Imersões Cotidianas na Educação Inclusiva: Múltiplos Olhares, Múltiplos Saberes”, destaca que os estudos e práticas voltados para a inclusão dos surdos na educação apontam para o exercício da chamada “pedagogia visual”. “Consiste em trabalhar, no ensino, a visualidade dos conteúdos, com recursos, como maquetes, slides, mapas, vídeos com Libras, entre muitos outros. É uma maneira de pensar o estudante surdo de outra forma que não por seu déficit, reconhecendo-o como um sujeito ativo no processo educacional, com um idioma próprio e que tem também sua própria cultura. A diferença entre um surdo e um ouvinte é só a língua usada para se comunicar.”
Segundo Gabriel, no caso de crianças surdas, há ainda mais especificidades no que tange às demandas educacionais, estimulando desde cedo a visualidade como instrumento de compreensão e aquisição de conhecimento e criando, em casa, um ambiente que favoreça a formação. “Os pais devem aprender Libras desde o começo da vida da criança e, tão logo seja possível, colocá-la em contato com um adulto surdo, primeiro porque se trata de um modelo linguístico e cultural hereditário e depois para que ela compreenda que sua surdez não a coloca em posição de solidão no mundo.”
Discussão e adequações contínuas
Além da Lei 10.436 de 2002, que institui a Libras como segundo idioma nacional, existem no Brasil outros instrumentos legais que asseguram – ou deveriam assegurar – a inclusão de pessoas surdas na educação, como a Lei 5.626, de 2005, que regulamenta o decreto anterior, tornando obrigatório o ensino do idioma nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério em nível médio e superior e nos cursos de Pedagogia e de Fonoaudiologia, e também recomenda sua inclusão progressiva nas demais licenciaturas do ensino superior. Há ainda o Plano Nacional de Educação (PNE), de 2014, que estabelecia metas para os próximos dez anos, tendo o item 4.6 como “garantir a oferta de educação bilíngue, em Libras como primeira língua e na modalidade escrita da Língua Portuguesa como segunda língua, aos alunos surdos e com deficiência auditiva de 0 (zero) a 17 (dezessete) anos, em escolas e classes bilíngues inclusivas”. Três anos depois, as ações realmente inclusivas caminham a lentos passos, apesar de alguns deles serem grandes e importantes.
A atual gestão da UFJF vem buscando cada vez mais maneiras de integrar os surdos não apenas à comunidade acadêmica, mas a um modelo educacional que lhes permita desenvolver todas as suas potencialidades. Além da licenciatura em Letras-Libras, a instituição oferece cursos do idioma para o público interno e externo, disponibiliza intérpretes não apenas para a sala de aula, mas também em setores de atendimento ao público (inclusive nos processos de seleção), oferece monitores para os estudantes surdos e incluiu a interpretação em Libras de todo seu material institucional, inclusive a divulgação de editais de oportunidades, entre outras ações. “Começamos a fazer os vídeos por uma provocação de alguns alunos surdos, que questionavam, ao ver nossas campanhas institucionais: ‘Nós, surdos, continuamos sem entender’. Fizemos um extenso trabalho de pesquisa e adaptação de nossas equipes, junto com especialistas, e hoje todo nosso material tem intérprete de Libras”, avalia o diretor de Imagem Institucional da UFJF, professor Márcio Guerra. Algumas ações, como a divulgação do sorteio de vagas para alunos do Colégio de Aplicação João XXIII, extrapolam as fronteiras da comunidade acadêmica. “Qualquer surdo que assista ao vídeo pode inscrever seu filho no concurso, porque tem um intérprete de Libras que garante acesso a esta informação”, ressalta Gabriel Martins.
Políticas de inclusão
Para Márcio Guerra, as políticas de inclusão para surdos no contexto da UFJF ainda precisam evoluir muito, mas a existência desta demanda, por si só, aponta para um horizonte mais promissor. “Felizmente, ampliamos consideravelmente o acesso de estudantes surdos à universidade, e isso traz novas demandas para que este público seja atendido de forma plena. Mas a adaptação para que isto aconteça leva algum tempo, porque requer mudanças em procedimentos, capacitação, etc. O fundamental é que a discussão e estas adequações sejam contínuas, e que sejam realizadas junto a quem é atendido por estas ações”, diz Márcio. “Nossa intenção, com essas políticas de inclusão, é também atingir o público ouvinte da universidade, buscando abrir suas mentes para a diversidade, e isso vai além dos surdos, mas em um sentido amplo.”
Juiz de Fora também tem ações
Em âmbito municipal, a Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) contabiliza, de janeiro até a data de publicação da matéria, 400 atendimentos na Central de Interpretação de Libras (CIL), com acompanhamento de intérpretes de Libras a pessoas com deficiência auditiva em serviços de saúde, educação, jurídicos, bancários e outros. Outros projetos também buscam ampliar a acessibilidade da comunicação, como o Curso de Libras para servidores públicos e para a população em geral. Segundo a SDS, quatro turmas já se formaram e três estão em andamento. Além disso, órgãos como a Associação dos Surdos, sem vínculos governamentais, promovem diversas ações para aumentar a inclusão da população surda, de ensino do idioma a atividades de lazer e entretenimento diversas.