Mortes de jovens disparam em dez anos

Estatísticas de registros civis feitas pelo IBGE mostram que número de óbitos por causas não naturais entre pessoas com idade entre 15 e 24 anos aumentou mais de dez vezes em JF


Por Renato Salles

10/12/2017 às 07h00

As mortes de jovens em Juiz de Fora apresentaram um salto significativo nos últimos anos. De acordo com detalhamento das estatísticas do Registro Civil 2016, divulgadas no último dia 14 de novembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de óbitos de pessoas entre 15 e 24 anos por causas não naturais chegou a 63 ocorrências, mais de dez vezes maior que observado pelo mesmo levantamento em 2006, quando os números oficiais identificaram o registro de seis mortes por razões não naturais na cidade na faixa etária citada. O aumento chega a 950%. Basicamente, a cidade responde por 80% das mortes não naturais deste segmento etário registradas em sua microrregião formada por 33 municípios.

Coordenador do núcleo de estudos sociopolíticos da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o cientista social Robson Sávio, destaca que, por características etárias, sociais, econômicas e por conta de limitação de acesso a serviços públicos, os jovens lideram tais indicadores. “A juventude se arrisca muito mais. No trânsito e no acesso às drogas, por exemplo. Em qualquer sociedade, os jovens são o grupo mais vulnerável. Qual o maior índice de desemprego no Brasil? Em que segmento incide o maior índice de acidentes? Em qualquer aspecto, a juventude é mais vulnerável. Quando se associa esta vulnerabilidade com questões de ordem socioeconômica e étnico-racial, como acontece em importantes cidades brasileiras, isto explica porque é este grupo o que mais morre. Inclusive é também o que mais mata.”

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Os óbitos não naturais são aqueles causados por fatores externos, como acidentes, suicídios e homicídios. Apesar de expor uma realidade que sugere um crescimento da violência urbana, os números oficiais podem estar distantes do recorte real por conta de subnotificações, que, de certa forma, maquiam a realidade. Um exemplo disto é a diferença entre o número de homicídios registrados pela Secretaria de Estado de Segurança Publica (Sesp), fonte oficial que considera apenas homicídios consumados no registro da ocorrência, e levantamento anual mantido pela equipe da Tribuna, estatística que leva em conta não só os óbitos ocorridos posteriormente aos crimes, como também as mortes decorrentes deles, incluindo casos investigados como latrocínio e feminicídio. Em 2016, por exemplo, o jornal identificou o número recorde de 154 mortes violentas na cidade, enquanto a Sesp computou 130 homicídios.

Crescimento vertiginoso

Nos últimos anos, no entanto, é possível identificar que o número de homicídios em Juiz de Fora mantém curva ascendente. Entre 2012 e 2016, por exemplo, os registros de casos notificados pelo Estado dobrou, passando de 65 assassinatos para 130 casos no período analisado pela reportagem. Quando observamos os dados da Tribuna, o crescimento é menor, mas ainda significativo, com os casos de mortes violentas crescendo 55,5% em cinco anos. O cenário é ainda mais preocupante quando comparado com a realidade do estado e de Belo Horizonte, que registrou queda no número de ocorrências registradas no recorte.

Em Minas Gerais, o número de homicídios entre 2012 e 2016 se mostrou basicamente estável. Houve um pequeno crescimento percentual de 3,1%. No caso de Belo Horizonte, observa-se um recuo das ocorrências de homicídios no mesmo período. Em 2012, foram registrados 797 assassinatos na capital. Já no ano passado, o número foi 26% menor, quando dados oficiais da Secretaria de Estado Segurança Pública (Sesp) computaram 586 casos em 2016.

Negros e jovens são a maioria das vítimas

Segundo balanço realizado pela Polícia Civil em setembro, quando o levantamento da Tribuna computou o centésimo caso de morte violenta na cidade em 2017, mais da metade das vítimas foram jovens de até 25 anos. Ainda de acordo com a corporação, a maior parte das ocorrências incidiu em áreas periféricas, em alguns bairros onde é nítida a insuficiência do Estado com políticas públicas, como a Vila Olavo Costa, na Zona Sudeste. Tais áreas lideram o ranking dos assassinatos. A presença de arma de fogo foi observada em cerca de 80% dos casos registrados. Até a ocasião, a Zona Norte, detentora do maior espaço territorial e do maior número de habitantes, liderava os números de homicídios, com 48 ocorrências. As regiões Sudeste e Leste surgiam em seguida, com 28 e 24 assassinatos, respectivamente.

Números do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Expediente (Ipea), que lançou o Atlas da Violência 2017 em junho, reforçam a avaliação de que as maiores vítimas letais da violência urbana em Juiz de Fora são jovens e negros. Os últimos dados consolidados do instituto estratificam os homicídios registrados em 2015, ainda com base nos números oficiais. Segundo o levantamento, dos 124 assassinatos registrados na cidade naquele ano, 84 casos tiraram a vida de negros, o que corresponde a 67,7% do total. Tal percentual variou de 58,5% a 68,1% entre 2012 e 2016.

Em uma triste curiosidade, os dados relacionados a vítimas da juventude juiz-forana refletem um cenário idêntico às mortes violentas envolvendo a população negra. Em 2015, dos 124 registros oficiais de homicídios, 84 envolveram indivíduos com idades entre 15 e 29 anos, o que também corresponde a 67,7% do total. Um exercício de matemática básica é suficiente para constatar que as maiores vítimas letais da violência urbana são os jovens negros da cidade. O cientista social Robson Sávio avalia: “Vítimas e, em parte, os autores de crimes contra a vida têm um perfil étnico-racial, que são os negros; têm um perfil sócio e econômico, que são os favelados e os pobres; e têm um perfil geracional, que são os jovens. Algo em torno de 70% das vítimas se adéquam a este perfil”, pontua, reforçando o entendimento de que grande parte das mortes violentas incide entre os jovens negros e integrantes da parcela mais pobre da população.

‘Racismo absoluto’

Tal constatação também foi tirada em levantamento feito por movimentos sociais da cidade, em especial o Convergência Negra, em parceria com a Superintendência Regional de Ensino (SRE). A análise foi feita ao longo de novembro passado, mês da Consciência Negra, em ação batizada como “20 dias de Ativismo contra o Racismo”. Na avaliação dos integrantes da mobilização, das 154 mortes violentas registradas na cidade no ano passado, tendo como base números de mensuração mantida pela Tribuna, a maioria esmagadora das vítimas é da população negra e com idade até 29 anos. Para o sociólogo Martvs das Chagas, há uma naturalização das mortes das pessoas negras, o que denota um viés de “racismo absoluto”.

“Destas pessoas (vítimas de morte violenta em 2016), perto de 85% tinham até 29 anos de idade e eram negras, pobres e moradoras da periferia, sendo que 96% eram do sexo masculino. O extermínio da população negra, em que pese o aumento de mulheres negras no último período, atinge diretamente os homens, que, nos anos iniciais da vida, são a maioria da população”, afirma o documento formulado pela Convergência Negra e outros movimentos sociais. Para exemplificar tal entendimento, o texto usa dados do IBGE que mostram que os homens são a maioria da população na faixa etária que vai de zero a 14 anos, com as mulheres passando a ser maioria do contingente populacional da cidade acima de 15 anos de idade.

O documento elaborado pela Convergência Negra e pela SRE foi apresentado publicamente na última segunda-feira (4), durante audiência pública da Assembleia Legislativa de Minas Gerias (ALMG) realizada em Juiz de Fora exatamente para debater os altos índices de homicídios que incidem sobre os jovens negros de Juiz de Fora. Como forma de superação de tal cenário, os movimentos sociais sugerem a criação de um comitê de crise com a participação de representantes do Estado e do Município; a realização de um seminário municipal para debater a temática; a retomada e a ampliação de programas sociais mantidos pela Prefeitura nas áreas periféricas da cidade; a criação de espaços de convivências nas escolas públicas; e a plena implementação no Município da Lei 10.639/03, que trata do ensino sobre história e cultura afro-brasileira para alunos dos anos iniciais.

Interiorização da violência também afeta municípios vizinhos

Apesar de os números do IBGE, com base nos registros oficiais, mostrarem que Juiz de Fora concentra a maioria de mortes não naturais de jovens entre 15 e 24 anos, o problema é identificado em outros municípios da Zona da Mata, reforçando aquilo que especialistas já tratam como interiorização da violência. Na microrregião, o número de mortes não naturais de indivíduos com idade entre 15 e 24 anos variou de 14 casos registrados em 2006 para 79 computados no ano passado, o que significa um aumento de 464% no recorte. Assim, os casos cresceram mais de cinco vezes em uma década.

Além de Juiz de Fora, os números oficiais de 2016 computaram óbitos com tal característica em outras nove cidades da microrregião. Foram seis ocorrências em São João Nepomuceno; três em Rio Novo e uma em Bias Fortes, Coronel Pacheco, Guarará, Lima Duarte, Santa Bárbara do Monte Verde, Santos Dumont e Simão Pereira.

Os 63 óbitos de jovens entre 15 e 24 anos observados no ano passado em Juiz de Fora correspondem a 29% de todas as 215 mortes não naturais que constam nos registros oficiais da cidade do ano passado. Entre 2006 e 2016, estes óbitos quadruplicaram na cidade – passando de 53, há 11 anos, para 215. Na região, o crescimento do índice observado foi menor: 135%. Ao todo foram 306 casos nos 33 municípios detalhados pela reportagem. Depois de Juiz de Fora, São João Nepomuceno computou o maior número de casos: 17.

“Historicamente, a sociedade brasileira é muito violenta. Desde o chamado descobrimento até hoje, temos a matança de grupos étnico-raciais. Esta violência letal que, inicialmente, atinge as grandes cidades, alastra-se a partir dos anos 1980. Está relacionada com o fenômeno do adensamento do tráfico de drogas e da disputa dos territórios por traficantes e também com a quantidade de armas disponíveis. O vetor dos homicídios no Brasil são as armas de fogo. Nas últimas décadas, este cenário vai se espalhando Brasil afora. Primeiro, estende-se até as capitais do Sudeste. Em um segundo momento, chega às capitais do Nordeste. Aí já há um período de interiorização da violência, que começa por volta de 2004 e 2005”, considera o cientista social Robson Sávio.

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Variáveis

Robson ressalta ainda que a crescente nos índices de violência letal se acentuou em municípios interioranos a partir de meados dos anos 2000. “Até cerca de 2007, os indicadores de violência em Juiz de Fora eram muito baixos em comparação à média do estado. Depois, vimos um ‘boom'”, destaca. Para o especialista, há várias variáveis que contribuem para o fenômeno social. “Tem a ver com a disputa do tráfico, que é uma disputa por território, mantida por grupos fortemente armados. É também uma disputa com as forças policiais, que, no Brasil, têm uma espécie de autorização implícita de matar, pelo fato de não haver mecanismos eficientes de controle e nem de punição por parte da Justiça.”

Para o cientista social, as forças de segurança e do Poder Judiciário brasileiro se pautam por aspectos repressivos e punitivos, em detrimento de ações preventivas, o que contribuiria para a situação. “Como o modelo de segurança hoje favorece as classes média e alta, há um clamor destes segmentos privilegiados, que são vocalizados pela mídia, de que as polícias agem bem assim. Por outro lado, no Brasil, menos de 10% dos homicidas estão presos. Isto ressalta o problema da deficiência de nosso sistema de Justiça. Se o indivíduo é branco, de classe média, réu primário e tem um bom advogado, há chances de a investigação sequer ser concluída.”

Ainda com base na percepção de Robson Sávio, a Justiça brasileira “pune muito, mas pune mal”. “Entupimos as unidades prisionais de pequenos usuários e traficantes e de pessoas que cometem crimes contra o patrimônio, mas, em relação aos homicídios, o encarceramento é mínimo.” Outra variável seria a localização da cidade. “Juiz de Fora está em um lugar estrategicamente complexo: muito próxima do Rio de Janeiro; e cortada por várias rodovias que recebem tráfego saindo do Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo e Minas Gerais”, avalia, deixando espaço para entendimentos acerca de possível migração da criminalidade oriunda de centros maiores para a cidade.

Não há solução mágica, mas caminho passa por prevenção

Para o cientista social Robson Sávio, no entanto, não uma solução mágica para equalizar o problema da violência urbana letal. Para ele, porém, há caminhos para minimizar a questão que passam essencialmente por aspectos preventivos, de planejamento estratégico e de articulações diretas e permanentes de autoridades estaduais e municipais. “É preciso estabelecer estruturas locais para o desenvolvimento de políticas de segurança pública. Isto não é só criar uma guarda municipal, por exemplo. São necessárias ações de prevenção. Não adianta ficar em um jogo de empurra entre Estado e prefeituras sobre em que pesa as responsabilidades. Os municípios têm que chamar a responsabilidade para si e elaborar um plano de segurança que contemple ações de curto, médio e longo prazo. A responsabilidade de prevenção primária é do município e precisa ser voltada para os grupos vulneráveis e aos mais jovens.”

Em nota encaminhada à reportagem, a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) detalhou as ações adotadas pelo Estado de forma a combater a criminalidade em Juiz de Fora. De acordo com a pasta, nos próximos dois meses, a cidade vai ganhar um Centro de Prevenção à Criminalidade com os programas Fica Vivo! e Mediação de Conflitos. “A unidade será instalada na Vila Olavo Costa e vai atender moradores da comunidade e de áreas vizinhas.” Segundo o texto, a implementação do equipamento já está em andamento. A Sesp destacou ainda que o município já possui dois programas de prevenção à criminalidade em funcionamento. “O Programa de Inclusão de Egressos do Sistema Prisional (PrEsp) realizou, somente neste ano, 886 atendimentos, enquanto a Central de Acompanhamento de Penas e Medidas Alternativas (Ceapa) monitorou 1.259 penas alternativas em Juiz de Fora.”

No mesmo sentido, a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) afirmou que não mede esforços para apurar e combater a criminalidade violenta nos municípios mineiros. “Em Juiz de Fora, por exemplo, o índice de apuração de homicídios chega a 82,5%, muito superior à média nacional. Além disso, (a Polícia Civil) atua fortemente na repressão ao tráfico de drogas, crime, cuja motivação, reflete em cerca de 90% das mortes registradas no município. (A instituição) também vem monitorando a questão relacionada à rivalidade entre regiões, a chamada ‘briga entre gangues’, que impacta igualmente nos índices, afirma outra nota encaminhada à reportagem.

A Polícia Civil destacou que, em novembro, a instituição desarticulou duas organizações criminosas para fins de tráfico de drogas em Juiz de Fora. “Estas operações resultaram em diversas prisões, além de apreensão de materiais relacionados a práticas criminosas.” A entidade salientou ainda que, nos últimos dois anos, tem incrementado o quadro de policiais das diversas carreiras, com a efetivação de mais de 1.150 profissionais prestando serviços em todo o estado. “Todas essas ações visam a reprimir, por meio de investigações qualificadas, os crimes que ocorrem no estado, além de aprimorar constantemente o atendimento à população e de promover a segurança pública em Minas Gerais”, afirma a nota. A Tribuna também solicitou posicionamento da assessoria da Polícia Militar, que destacou que as respostas ficariam a cargo da Secretaria de Estado de Segurança Pública.

Já a Prefeitura respondeu, por meio de nota que, “ainda que seja uma atribuição do Estado, desde 2013, vem adotando uma série de medidas para integrar a segurança pública no município”. Segundo a assessoria, o Executivo municipal passou a contar com uma secretaria específica para tratar tal tema, a Secretaria de Segurança Urbana e Cidadania, que articula ações com as polícias Civil e Militar e abriga a Guarda Municipal. Afirma, ainda, que investe na prevenção, com políticas sociais, com o aumento de cerca de 30% das vagas de creches, criação da praça CEU (Centro de Esportes Unificados), na Zona Norte, e viabilização de programas, como Bom de Bola, Gente em Primeiro Lugar e Complexo Travessia, que envolvem mais de cinco mil crianças e adolescentes, entre outras medidas.

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