Cerca de 6 mil mineiros aguardam em fila de espera para transplante

Quantidade de cirurgias desse tipo caiu em janeiro na comparação com o mesmo período de 2022; transplantados e especialistas contam histórias e reforçam que doação pode salvar vidas


Por Pâmela Costa, sob supervisão da editora Rafaela Carvalho

09/03/2023 às 13h33

Mesmo após a morte, é possível salvar uma vida. Entretanto, 6.054 mineiros lutam contra o tempo enquanto aguardam por um órgão na fila de espera para transplantes. É o que revelam as estatísticas de janeiro de 2023 do MG Transplantes, que gerencia a realização dos procedimentos em Minas Gerais. De acordo com os dados, no ano passado, foram doados 2.003 órgãos no estado. Apesar disso, o número de transplantes realizados caiu em janeiro quando comparado ao mesmo período do ano passado: foram 92 procedimentos feitos no primeiro mês deste ano, contra 111 em janeiro de 2022. Na prática, os dados expõem que a taxa de doações precisa aumentar, já que, afetado pela pandemia, o número ainda é tímido se comparado à quantidade de pessoas que aguardam na fila de transplantes no estado.

Um exemplo disso é a espera por doações de córneas. O tecido fica, com frequência, no topo de mais necessitados. Neste ano, embora tenha sido substituído por rins no topo da lista, a quantidade de pessoas precisando de córneas ainda é alta – são 2.947 mineiros aguardando a doação de um rim contra 2.928 na fila do transplante de córnea. Para o oftalmologista do Monte Sinai, especializado em transplante de córnea, Rafael Merola, o tempo de espera para esse tipo de doação ainda é elevado por consequência da pandemia, pois foi grande a crise que a Covid-19 causou nos sistemas de captação e doação de órgãos de todo o Brasil. Entretanto, ele olha positivamente para essa realidade, esperando que ela, gradativamente, se reverta.

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A possibilidade da realização de um transplante de córnea, inclusive, acaba sendo maior, já que a captação de uma córnea não depende de morte cerebral, como a de outros órgãos, e nem de compatibilidade. “A córnea pode ser captada até seis horas após o óbito. Desse modo, o número de potenciais doadores de córneas é bem maior que o de rins. No caso dos rins, ou se consegue algum familiar com compatibilidade imunológica ou depende-se de uma doação por morte encefálica”, afirma o médico. Tendo uma boa saúde, a pessoa pode ser doadora de rim. No entanto, a doação desse órgão, quando feita entre pessoas vivas, precisa seguir determinados critérios. Segundo a Lei Brasileira, é necessário que se tenha até o quarto grau de parentesco com o receptor ou seja cônjuge do mesmo para fazer a doação.

A demanda por fígado, pâncreas, coração, escleras e medula óssea também são grandes. Até janeiro deste ano, 33 pessoas aguardavam um transplante de coração; 86 de fígado; 49 de rim e pâncreas; e 11 de pâncreas. Entretanto, independente da quantidade de pessoas na lista de espera ou do órgão necessitado, o médico destaca a importância de ser um doador. “Muitas pessoas estão sem enxergar, ou fazendo hemodiálise, ou com dificuldades de respirar ou mesmo de andar, e poderiam melhorar sua saúde ao receber um órgão ou tecido doado”, diz Rafael Merola.

O mundo através dos olhos – que foram recebidos

Há quem diga que os olhos são a janela da alma. Para Thais Almeida, 20 anos, estudante de Fisioterapia, eles são o portal para o mundo dos livros, principalmente daqueles de romance, pelos quais ela é apaixonada. Diagnosticada com ceratocone, uma condição em que a córnea se projeta para frente, em forma de cone, sua visão no olho direito ficou comprometida. Demorou cerca de um ano até que a jovem conseguisse ser transplantada.

Ela conta que foi agoniante esse período de espera, quando se juntou à extensa lista de pacientes no aguardo por um órgão. O transplante aconteceu em dezembro do ano passado e foi realizado pelo médico Rafael Merola. O especialista foi também responsável por desmistificar o procedimento para a estudante. “Não é um bicho de sete cabeças”, relembra ela, sobre as palavras que a encorajaram no processo. Atualmente, Thais, ainda em recuperação pós-operatória, não precisa de óculos ou lente para enxergar e pode mergulhar de olhos bem abertos no mundo da literatura.

São diversas patologias corneanas que podem ser tratadas por meio de um transplante: ceratocone, distrofia de Fuchs da córnea, traumas oculares, úlceras de córnea, leucomas, entre outras. Esse procedimento, embora invasivo, oferece que a potencialidade dos olhos seja recuperada.

Morador de JF fez hemodiálise por 23 anos antes de transplantes

Quase metade das pessoas que estão na fila por transplante em Minas aguarda um rim. Se em 9 de março, dia mundial desse órgão, é relembrada a importância dele, para 48,68% dos pacientes da fila de espera por transplante no estado, seu valor é lembrado todos os dias.

É o caso de Magnus Teixeira Ribeiro, de 52 anos, que conseguiu fazer transplante auxiliado por uma ferramenta que ele mesmo desenvolveu. Tudo começou com o diagnóstico de insuficiência renal crônica terminal, ainda com 18 anos. O primeiro sintoma foi um inchaço na perna, mas o que gerou maior impacto na sua vida viria depois: o atestado que o classificava como “inválido”.
Na época, o jovem era paraquedista do Exército e muito ativo em relação a esportes, principalmente no karatê. Por isso, nos primeiros quatro anos como paciente da hemodiálise, ele considerava que aquela situação era um atestado de morte. Foi pensando que logo morreria que o jovem, durante esse tempo, não reagiu. Mas com o passar do tempo, viu que sua partida não estava próxima, muito menos decretada.

Nos estudos, Magnus encontrou um propósito e também uma subversão: se tornar útil, ao contrário do que seu laudo médico havia atestado. Natural de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, ele escolheu Juiz de Fora para morar e se mudou para a cidade em 1993. Não demorou muito até acontecer a aprovação na Faculdade de Química. No fim do curso, surgiu um novo começo: ele conseguiu realizar o transplante, em 1999.

Passados dois anos, no entanto, ele teve insuficiência renal novamente, desta vez, com o órgão transplantado, e recomeçou a hemodiálise. Um árduo desafio, que foi amparado pela possibilidade de preencher a mente com o estudo. Devido à complexidade do tratamento, ele largou a faculdade, mas não seu ímpeto por adquirir conhecimento. Sentado na mesa da hemodiálise, quis fazer algo que rendesse frutos durante as quatro horas em que fazia o tratamento, três vezes por semana. Tomado pelo interesse em informática, ele acabou ingressando em um curso técnico de Sistemas para Internet e conseguiu uma bolsa acadêmica para a especialização em linguagem JAVA.

Projeto Magnus

Ainda em período de tratamento, ele começou a desenvolver um software para o médico Gustavo Ferreira, médico coordenador de transplantes da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora. O resultado foi a criação de um ambulatório virtual para os pacientes que estão à procura de transplantes. Foi assim que o Projeto Magnus, que leva seu nome, foi criado e ainda é usado atualmente.

Finalista de um concurso mundial promovido pela Amazon, o Projeto Magnus é um app que trabalha exclusivamente com transplante. Os pacientes não possuem acesso, apenas os colaboradores que atuam diretamente com o procedimento de doação de órgãos. Através dessa tecnologia, a pessoa é cadastrada em um sistema que possibilita um processo de triagem mais eficaz, com todas as documentações necessárias para fazer o transplante reunidas no aplicativo, sendo necessário apenas a impressão e conferência desses documentos, o que facilita esse processo, que por si só já é tão complexo.

Um dos sócios do projeto, Magnus Ribeiro, tornou-se fonte de inspiração para Gustavo Ferreira, colaborador técnico do aplicativo e também presidente da Associação Brasileira de Transplante de órgãos. O médico destaca que a história de seu paciente é também motivo de reflexão para ele acerca da capacidade de ajudar o próximo. “Mesmo com as limitações que a saúde lhe impunha, ele conseguiu passar essas barreiras. Algo que ele fez para ajudar a sociedade, e anos depois ele pode ser ajudado, sendo o paciente número um da plataforma”, conta, admirado.

‘Melhor fase da vida’

Os anos se passaram, e um segundo transplante parecia quase impossível para Magnus. A cada quatro anos realizando hemodiálise, a possibilidade para fazer transplante diminui. No seu caso, que já fazia hemodiálise há 16 anos, o risco crescia exponencialmente. Ele conta que sua mãe chegou a escutar “seu filho não passa de hoje”, e todo dia, ele chegou adiante. Em 2018, ele conseguiu fazer o segundo transplante.

Ao todo, foram 23 anos fazendo tratamento de hemodiálise. Nesse período, buscou nas filosofias das religiões respostas para o sofrimento e encontrou explicações que o saciavam. Em todos os núcleos religiosos, achou Deus. Ele, no entanto, compartilha que a espiritualidade não está só nesta figura. “O agricultor que põe uma semente na terra, tem que ter fé para plantar e esperar nascer”, conta Magnus, com uma sensibilidade que não faz mistério de onde vem: “o segredo para o sucesso é sorrir”, acrescenta ele.

No ano passado, ele fazia caminhada todos os dias, até que uma dor no pé surgiu, e ele descobriu que suas veias estavam entupidas, só restando fazer a operação. Por causa de uma trombose, amputou uma perna. Isso, porém, não o impediu de afirmar que, atualmente, está na melhor fase de sua vida.

Rim lidera lista de órgãos mais necessitados

Similar ao quadro estadual, na procura nacional também sobressai a demanda de córneas e rins. As doenças que afetam esses órgãos se perpetuam como prevalentes, por isso a necessidade de chamar atenção para a importância das doações.

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De acordo com a nefrologista Fabiana Bonato, as principais causas do desenvolvimento de doenças renais no Brasil estão ligadas à hipertensão e ao diabetes. Pacientes que se enquadram nesse retrato devem fazer exames anuais, a fim de acompanhar a creatinina no sangue e a presença de substâncias no exame de urina simples.

Desse modo, o controle sobre essas situações é um dos grandes aliados na manutenção da saúde do rim. No cenário atual do país, já se somam 170 mil brasileiros que são submetidos à hemodiálise. Desse número, cerca de 30 mil estão na fila do transplante de rim, explica Gustavo Ferreira, presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos.

A Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) também deu um panorama sobre pacientes que estão realizando hemodiálise no estado e na cidade. Até dezembro de 2022, cerca de 21.613 pessoas estavam em hemodiálise somente em Minas Gerais e, aproximadamente, 735, em Juiz de Fora.

Além de doenças que acabam por consequentemente afetar o rim, a população também é atingida pelas glomerulonefrites, doenças autoimunes que precisam de tratamento com imunossupressores. Assim como outras enfermidades, o diagnóstico precoce continua sendo a forma mais benéfica de se lidar com as doenças. Ao descobrir prematuramente é possível tratar com medicamento a fim de que se evite a progressão.

Entretanto, os principais aliados continuam sendo uma rotina saudável. É o que aponta a nefrologista Fabiana Bonato. O caminho indicado por ela é evitar o consumo excessivo de sal e de produtos industrializados, além de não fazer uso desmedido de anti-inflamatórios não hormonais que também podem acabar sendo tóxicos para os rins. Neste caso, a prioridade deve ser analgésicos comuns, tais como dipirona. Outro agente colaborador é a realização de exercícios físicos, a fim de evitar o sobrepeso, o que vale tanto para a saúde dos rins como de todo o corpo.

Brasil é o país com o maior programa de transplante público no mundo

Por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), o Brasil dispõe de uma ampla rede, que possibilita acesso igualitário para a realização de transplantes. Independente da condição socioeconômica, os indivíduos podem realizar o procedimento de forma gratuito. Porém, com a pandemia, houve um hiato no crescimento no número de doações.

Isso fez com que, nos anos de 2020 e 2021, caísse significativamente a oferta de doadores, eclodindo em uma fila que atualmente já tem mais de 50 mil brasileiros na espera para transplantar, segundo o presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos.

Em Juiz de Fora, dois locais realizam transplante de rim: a Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, que, somente no ano passado, realizou 173 transplantes desse órgão, e o Hospital Universitário (HU), que fez quatro procedimentos desse tipo. O número corresponde a uma grande parcela dos transplantes feitos no estado, uma vez que foram 518 doações de rins de falecidos e 151 de pessoas vivas somente em Minas Gerais no último ano.

A taxa de transplantes feitos apenas em Juiz de Fora é elevada, pois a cidade possui o hospital com o maior programa de transplante de rim do estado, que é a Santa Casa. A instituição é também a sexta maior do país na execução do procedimento, com uma rejeição inferior a 10% dos casos.

Ações em JF chamam atenção para a saúde do rim

Para comemorar a data que rememora a importância do rim, nesta quinta-feira, (9), uma equipe multiprofissional do Departamento de Controle, Avaliação e Auditoria da Subsecretaria de Regulação vai estar presente no Calçadão da Rua Halfeld, em frente ao Cine Theatro Central, de 9h a 16h.

Na ocasião, serão oferecidos à população serviços como aferição de pressão e glicemia, além da divulgação de informações sobre os cuidados com o rim. Pessoas em situação de vulnerabilidade serão encaminhadas para a realização de exames e consultas.

A ação é uma parceria da Prefeitura de Juiz de Fora com centros universitários locais: UFJF, Suprema, Estácio de Sá e Universo, representados por seus professores, acadêmicos e residentes dos cursos de Enfermagem e Medicina, incluindo membros das Ligas Acadêmicas de Nefrologia.

A Agência de Cooperação Intermunicipal em Saúde Pé da Serra (Acispes) também preparou atividades de prevenção em saúde do rim, em uma instituição de ensino superior da cidade. Atualmente o local possui um eixo do Centro Estadual de Atenção Especializada especializado no cuidado dos doentes renais crônicos.

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