JF perde 137 vidas em 2017 para o crime, cerca de 90% ligados ao tráfico

Tribuna inicia série mostrando o total de vítimas de mortes violentas no ano passado. Até o próximo domingo, as reportagens vão trazer um diagnóstico dos homicídios nos últimos seis anos e ouvir autoridades e população sobre as causas, consequências e busca de soluções


Por Sandra Zanella (colaborou Pedro Capetti, estagiário sob supervisão da editora Marise Baesso)

07/01/2018 às 07h00

Como é viver na Rua da Esperança? A resposta deveria ser poética, mas a realidade dos moradores é bem mais dolorosa do que a imaginação pode sugerir e se espalha pelos vizinhos becos e travessas da Vila Olavo Costa, na Zona Sudeste, recordista de homicídios no ano passado. “Saímos e voltamos de casa pedindo a Deus”, diz uma mulher de 28 anos, nascida e criada em uma das vias mais sangrentas de Juiz de Fora em 2017. Das 137 mortes violentas contabilizadas pela Tribuna naqueles 365 dias, 11 ocorreram no bairro, sendo quatro na Rua da Esperança e três na Hortogamini dos Reis, situada bem próxima. Se somarmos os quatro assassinatos registrados no Furtado de Menezes e na Vila Ideal, interligados espacialmente à Olavo Costa, os óbitos chegam a 14, ou a quase 10% do total. Também com quatro homicídios cada, as vias Araxá e Agilberto Costa alavancaram o São Benedito, na Zona Leste, a um cruel segundo lugar, com dez casos. A estatística escancara o bolsão de violência presente em áreas onde políticas públicas de prevenção são historicamente escassas, e a vulnerabilidade da população, sobretudo das crianças e dos jovens, é imensa diante do tráfico de drogas.

Para tentar buscar respostas e soluções para a escalada de crimes fatais vivenciada nos últimos seis anos no município, a Tribuna inicia a série de reportagens “Vidas perdidas – um raio X dos homicídios em JF”. Além de mapear as mortes violentas ocorridas em 2017 e nos últimos seis anos – período em que houve explosão de assassinatos – , o projeto pretende mostrar como as polícias Civil e Militar e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário têm se articulado para reverter esse massacre assustador. Na versão on-line, com o uso da geolocalização, identificamos em um mapa interativo as ruas e os bairros com maior número de óbitos, demonstrando quais são as zonas quentes de criminalidade violenta em nossa cidade. Basta clicar em cada ponto vermelho para encontrar o resumo de determinado caso, e acessar o link para a matéria publicada na época.

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Queda de 11%

Apesar de as mortes violentas apresentarem queda de 11% na comparação entre 2017 e 2016, declinando do ápice de 154 para 137, o número permanece acima de 130, mantendo a média de um homicídio a cada dois ou três dias, como registrado nos últimos cinco anos, segundo levantamento da Tribuna. A estatística leva em conta também os óbitos ocorridos em hospitais posteriormente aos crimes, mas em decorrência deles, incluindo casos investigados como latrocínio (roubo seguido de morte) e feminicídio. Já a Polícia Militar contabiliza apenas os homicídios consumados na hora ou ainda durante a confecção do Registro de Evento de Defesa Social (Reds) e totalizou 111 ocorrências, contra 130 nos 12 meses anteriores.

Segundo o titular da Delegacia Especializada de Homicídios, Rodrigo Rolli, cerca de 90% dos assassinatos estão ligados de alguma forma ao tráfico de entorpecentes, seja por vingança, dívida ou disputas por pontos de venda. “Este ano foram poucos crimes passionais. São dívidas pequenas por tráfico de drogas e disputas por regiões. É um querendo tomar o ponto do outro.”

Zona Leste ultrapassa região Norte, com 37 contra 34 casos

Embora esteja concentrado nas áreas periféricas, o homicídio impacta toda a dinâmica da cidade. Em alguns locais, o medo do tiro faz as ruas e as praças públicas deixarem de ser ponto de encontro e de troca de afetos para se transformarem apenas em rotas de circulação. Uma das mudanças observada nos homicídios em 2017 é que a Zona Leste passou a liderar o número de assassinatos, chegando a 37 óbitos, contra 34 registrados na região Norte, maior área territorial e também populacional. Em seguida estão as zonas Sudeste (24), Sul (15), Cidade Alta (11), Nordeste (10), Zona Rural (5) e região central, com um registro. O único assassinato ocorrido no Centro foi da jovem Leila de Lima André de Paula, 18, esfaqueada no pescoço, por uma adolescente, 16, na Praça Antônio Carlos, Centro. O crime aconteceu no dia 15 de julho após o evento Arraiá da Cidade e teria motivação passional. A suspeita foi apreendida em flagrante.

Em 2016, a Zona Leste havia ficado na terceira posição, com 24 homicídios, atrás da Sudeste (30) e da Norte (51). Uma das possíveis explicações para a disparada de crimes violentos nessa região é a briga pela hegemonia do tráfico, sobretudo no São Benedito, onde aconteceram dez das 37 mortes daquela área. O Linhares também aparece logo atrás, com sete óbitos. “Entre outubro, novembro e dezembro, as mortes no São Benedito chegaram ao ápice, com seis casos. Praticamente metade dos homicídios ocorreram no fim do ano”, analisa o delegado Rodrigo Rolli. A coincidência da época teria a ver com as disputas e vinganças, que acabam criando uma roda da morte. “Um deles, por exemplo, foi assassinado por causa de uma guerra do tráfico existente entre o Santa Cândida e o São Benedito.”

Já entre o início e a metade do ano, os homicídios dispararam na Olavo Costa. “Tivemos índices altos, mas operações realizadas lá, principalmente em setembro, conseguiram frear. A função da polícia judiciária é repressiva, não é preventiva. Uma vez ocorrido, temos que atacar. Nossas repressões são feitas pontualmente”, garante Rolli, destacando que a repressão qualificada tem culminado em várias prisões. “Olhamos as regiões alvos de questões constantes, apuramos as autorias, executores e mandantes, transformamos isso em prova dentro dos inquéritos e levamos ao Judiciário, pedindo as prisões. Temos feito isso de forma sistemática.” Ele acrescenta que as tentativas de homicídios tiveram redução em torno de 35% e que o índice de apuração dos crimes contra a vida em 2017 chegou a 82,5%.

Mais da metade das vítimas são jovens de até 25 anos

Quanto tempo dura uma vida? Se levarmos em conta os 72 jovens assassinados no ano passado a resposta é: menos de 25 anos. Sim, infelizmente a juventude continua sendo o principal alvo dos homicídios em Juiz de Fora, totalizando 52,5% das mortes violentas em 2017. Dezessete vítimas nem sequer tinham completado 18 anos quando tiveram suas vidas ceifadas. A porcentagem é exatamente a mesma do ano anterior, quando 81 dos 154 óbitos violentos foram de pessoas com até 25 anos, sendo 18 delas adolescentes.

“É uma geração de jovens com vida curta”, observa o delegado Rodrigo Rolli, apontando que a maioria dos suspeitos também é da mesma faixa etária. “Pedimos o arquivamento de muitos inquéritos instaurados, tendo em vista que os autores foram assassinados em outros crimes. É uma demonstração de que a vida dentro deste tipo de criminalidade é pequena. Quem mata hoje, morre amanhã”, diz o delegado, acrescentando que cerca de 25 procedimentos tiveram esse viés.

Os homens continuam sendo maioria, e, nos últimos 12 meses, 125 foram assassinados, enquanto 12 mulheres foram mortas. As armas de fogo também prevalecem nas ocorrências: 114 ações criminosas foram praticadas com tiros. O delegado Rodrigo Rolli lembrou que, desde o ano passado, as armas de fogo utilizadas passaram a ser mais potentes e letais. “Estou até desacostumando a ver revólveres 38 e 32. Estamos vendo mais pistolas 380, ponto 40 e 9mm. E os criminosos estão cada vez mais agressivos. São execuções com dez, 15, 20 tiros.”

9 duplos homicídios e um triplo assassinato assustam

Apesar do suave declínio, a quantidade de vidas perdidas continua assustando e permanece alta desde 2012, quando o município viu praticamente dobrarem os óbitos violentos. Para o titular da Delegacia Especializada de Homicídios, Rodrigo Rolli, “o que mais alerta é que o número de ocorrências em 2017 diminuiu, mas o de mortos não, continuando praticamente no mesmo patamar do ano passado”. O motivo é a estarrecedora soma de nove duplos homicídios e de um triplo assassinato, elevando a quantidade de vítimas em uma mesma ocorrência.

De fato os múltiplos assassinatos trouxeram uma nova preocupação por revelar que os atiradores estão cada vez mais destemidos, não fazendo questão de livrar da mira possíveis inocentes, os quais estariam apenas “no lugar e na hora errada”. Em abril, três crimes tiveram pelo menos duas vítimas. No dia 5, Wendell Fernando Wenceslau Silva, 17, e Daniel David, 19, foram mortos com tiros em plena praça do Bairro Barbosa Lage, próximo ao Jóquei Clube II, na Zona Norte. Quatro dias depois, Charles Patrick Carvalho de Souza, 25, e Pedro Paulo Mendes, 21, morreram e outro jovem, 22, ficou ferido após uma série de disparos atingir o carro em que estavam no Dom Bosco, na Cidade Alta. No dia 21, Everton Amaro da Silva, 14, e Marcelo dos Santos Gonçalves Ribeiro, 18, foram executados com vários tiros de pistola 9mm dentro de uma casa na Travessa Carneiro da Silva, na Olavo Costa.

Em 2 de julho, Luisa Lima Machado, 22, e Caio Sérgio Gomes Marques, 24, foram encontrados sem vida pela PM baleados dentro de uma picape no Previdenciários, Zona Sul. No dia 23 do mesmo mês, Rafael Lopes da Costa, 20, e Fabiano da Silva, 39, foram executados próximo a um escadão no Três Moinhos, Zona Leste. Já em 15 de setembro, os irmãos, Pablo Caetano de Melo, 35, e Guilherme Luís de Melo, 39, foram assassinados com pistola 9mm, e outro homem, 41, ficou ferido na Rua da Esperança, na Olavo Costa. Em 13 de outubro, Tairine Lobo dos Santos, 26, e Josiane Militão da Rocha, 43, foram assassinadas com vários tiros dentro de uma casa na Rua Araxá, no São Benedito, Zona Leste.

Outro crime chocou pela extrema crueldade no dia 16 de novembro: três jovens, dois de 21 anos e um de 22, foram achados carbonizados no bagageiro de um Mitsubishi Pajero incendiado na Estrada de Joazal, no Bairro Usina Quatro, Zona Sudeste. A Polícia Civil não divulgou a identidade das vítimas porque solicitou exame de DNA para confirmação. Por fim, no segundo dia de dezembro, a adolescente Yasmin Lorraine Caraci Lionel, 17, e o jovem Cláudio Bruno da Silva, 19, foram baleados fatalmente em via pública no Filgueiras, Zona Nordeste.

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“Uma criança de 8 anos levou um tiro no Santa Rita, mas sobreviveu. Outras pessoas também foram alvejadas de forma involuntária. Isso demonstra que as ações não estão tão veladas”, conclui Rolli, citando o caso da menina baleada no abdômen durante a execução de um homem, 43, no dia 5 de agosto. O único duplo homicídio que fugiu às características de execução aconteceu no dia 14 de janeiro. Carlos Alexandre Gomes Matheus, 33, foi morto a tiros por policiais após matar a facadas a mãe Maria Antônia Gomes Matheus, 60, no Bairro Parque Guarani, Zona Nordeste. O homem sofreria de esquizofrenia e teria tentado atacar os PMs com uma cavadeira.

Na visão do titular da especializada, diante do crescimento do tráfico, manter os homicídios em um mesmo patamar já pode ser considerado um ganho. “Diante do efetivo e logística que temos, é uma vitória.” Para ele, embora a população ainda se sinta amedrontada, a situação está sendo controlada. “A verdade é que armas estão entrando em Juiz de Fora com muito mais facilidade do que no passado, armas pesadas. Acho que esse é o principal problema hoje. O tráfico está se armando, porque a venda de drogas cresceu. Isso aumenta o fluxo de caixa, e conseguem comprar armamentos mais caros, mais lesivos e que causam mortes mais violentas, com maior quantidade de disparos.”

“Tenho um filho, e ele não pode brincar na rua”

Na Rua da Esperança, na Olavo Costa, população tem rotina impactada pelos crimes (Foto: Fernando Priamo)

“Viver é perigoso”, já dizia o personagem Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Para a moradora da Rua da Esperança, que reza para sair e voltar para casa todos os dias, a violência começou a impactar mais sua rotina há cerca de cinco anos. “Antigamente não era como está hoje. Meninos novos entraram na vida do crime. Isso assusta todo mundo”, desabafa. “Tenho um filho que vai fazer 10 anos, e ele não pode brincar na rua, porque não sabemos o que pode acontecer. As pessoas de fora também têm medo de nos visitar.” O temor atual contrasta com a infância que a funcionária de lanchonete teve, com brincadeiras ao ar livre.

Sentindo-se acuada em meio a tiroteios à luz do dia, como o que resultou no duplo homicídio de dois irmãos em setembro, a moradora faz planos para se mudar, mas lamenta ainda não poder por questões financeiras, já que a casa, onde reside também com os pais, é própria. “Da última vez, um tiro acertou o meu carro. É muito complicada essa situação, afeta todo mundo. Mas não temos condições de pagar aluguel.”

Desde meados de 2016, a Olavo Costa conta com o Complexo Travessia, um projeto do Governo estadual, em parceria com o município, voltado para melhorar as condições de vida da população por meio de ações integradas nas áreas de saúde, educação, moradia, saneamento, organização social e renda, com foco no território.

Um dos objetivos é promover ações educativas e culturais para evitar o envolvimento de crianças e adolescentes com o tráfico de drogas. Mas matéria publicada pela Tribuna, em setembro, mostrou que o programa esbarra na baixa ocupação do espaço e na divulgação insuficiente da agenda de atividades, segundo moradores. Além disso, o próprio prédio foi depredado menos de 15 dias após a inauguração, quando cerca de 70 vidraças foram destruídas, e interditado temporariamente devido a estragos causados pela chuva.

Fica Vivo será instalado em janeiro na Olavo Costa

A vinda do projeto Fica Vivo para Juiz de Fora, confirmada pelo Governo estadual em maio, trouxe mais uma expectativa de mudar o cenário violento vivenciado, principalmente, nas regiões da Olavo Costa e São Benedito, que despontam como os bairros mais sangrentos. A ideia também é desenvolver trabalhos para tirar jovens da vulnerabilidade social, mas ainda não aconteceu.

Segundo a assessoria da Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp), o Fica Vivo será inaugurado na Olavo Costa ainda em janeiro, embora a previsão inicial fosse o segundo semestre de 2017. “A Política de Prevenção à Criminalidade do Estado é desenvolvida em parceria com uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público). O processo de 2017, finalizado em julho, acabou sendo judicializado, porque quem perdeu entrou contra quem ganhou. A decisão de retomada da parceria – que acarreta em contratação de pessoal, por exemplo – saiu em dezembro.” A Sesp garantiu estar “correndo contra o tempo” para entregar o Fica Vivo ainda nas próximas semanas. “O processo seletivo aberto para contratação de pessoal foi encerrado. A implantação dos móveis no local deve acontecer na primeira quinzena de janeiro.”

Voltado para a faixa etária de 12 a 24 anos, com o objetivo de prevenir homicídios, por meio de oficinas de esporte, cultura e profissionalização, o Fica Vivo também é esperado em outras regiões consideradas zonas quentes de criminalidade, como a Leste e a Norte. “Por ora, a previsão é na Vila Olavo Costa. Há outras expansões previstas para 2018, e os recursos do Tesouro serão para elas”, garante a Sesp, acrescentando que há parceria com a Prefeitura local para implantação.

Apesar de acreditar em possíveis melhorias com maior presença do Estado, a moradora da Rua da Esperança aponta a desestrutura familiar como uma das causas dessa violência, nitidamente atrelada ao tráfico de entorpecentes. “Os pais perdem o controle dos filhos. Eu tento explicar para o meu menino que esse não é o caminho.”

Linha do tempo dos homicídios

Conheça a metodologia por trás do levantamento da Tribuna

Clique aqui e confira mapa interativo de ruas e bairros com maior número de homicídios

Leia a segunda matéria da série na edição da próxima terça-feira.

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