O renascer de João Ribeiro


Por Daniela Arbex

04/12/2016 às 07h00

ESCOLHAS COTIDIANAS, como o cardápio do almoço, garantem a João (no centro de camisa azul) e a outros moradores, Ricardo (o primeiro a esquerda) e Fofão (de blusa laranja) o rompimento dos limites e a conquista da cidadania MARCELO RIBEIRO

ESCOLHAS COTIDIANAS, como o cardápio do almoço, garantem a João (no centro de camisa azul) e a outros moradores, Ricardo (o primeiro a esquerda) e Fofão (de blusa laranja) o rompimento dos limites e a conquista da cidadania. Foto: Marcelo Ribeiro

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João Ribeiro vai ter que se acostumar com a nova equação de sua vida: menos espaço é igual a mais liberdade. Até agora ainda não sabe lidar bem com as duas coisas. O homem que comoveu a cidade no ano passado, quando completou 19 anos de internação no Hospital Ana Nery sem sair às ruas, experimenta, há 45 dias, uma nova fase de sua existência. Desde que foi transferido para uma residência terapêutica no Bairro Costa Carvalho, ele conquistou o direito fundamental de ir e vir. Aos poucos, se acostuma com endereços de uma Juiz de Fora que não viu crescer e já tem até seu ponto preferido: a Igreja São José, na Avenida Sete de Setembro, onde vai todos os dias em busca de uma sombra para suas longas caminhadas. Católico, João reitera nos bancos da igreja os pedidos que faz desde que deixou a instituição hospitalar em outubro deste ano. Sonha com um emprego e com a emissão de sua carteira de identidade.

“Acho que as coisas serão melhores a partir de agora”, comenta o novo morador ainda tímido. Retomar os rumos da existência é o principal desafio do ex-chapa de caminhão. É que nos últimos 20 anos, João teve sua história congelada. O relógio parou para ele no dia 29 de agosto de 1996, época em que foi internado no Ana Nery para cuidar de sequelas na fala e na locomoção Tratado e curado, João continuou no hospital, porque sua curadora recusava-se a assinar a alta. Uma prima distante controlava o benefício de R$ 788 recebido pelo paciente até o ano passado. Dos quase R$ 800, só R$ 50 chegavam aos bolsos de João, que tentava preencher as horas vazias fazendo caminhadas diárias dentro do extenso terreno do Ana Nery.

Quando a Tribuna conheceu e publicou a história do interno, em agosto do ano passado, os ponteiros do tempo tornaram a correr para ele. O Ministério Público retirou a curatela concedida a tal prima de João, e o hospital se mobilizou para conseguir que o paciente tivesse, de fato, um lar. Como não há vestígios do pai e irmãos de João, ele foi parar na casa de Ricardo, Fofão, Jorginho e outros que, assim como ele, passaram tempo demais institucionalizados. Junto com os oito companheiros de moradia, João tenta reencontrar sua individualidade.

Não tem mais um quarto só para si, como no Ana Nery, e nem os milhares de metros quadrados que formam o terreno do hospital. Na casa de quatro quartos, sala, banheiro e quintal, no entanto, João ganhou o direito de explorar uma cidade inteira e a chance de vencer os limites que o mantinham encarcerado em si mesmo. A partir de agora, terá que aprender a fazer escolhas, administrar seu dinheiro, decidir o que tem vontade de comer. Aos 56 anos, João acaba de nascer.

Rotina não vigiada exige adaptação

Os serviços residenciais terapêuticos são locais de moradia destinadas a pessoas que passaram por longas internações psiquiátricas e estão impossibilitadas de retornar à sua família de origem. Nessas casas, os moradores passam por um processo de ressocialização e retomada das habilidades. Flávia Larota Guimarães, psicóloga que é referência técnica de metade das 12 residências terapêuticas administradas pelo Gedae, afirma que o mais bonito do trabalho mantido com repasse de recursos federais é ver os ex-pacientes ganharem autonomia.

O caminho do resgate da cidadania, no entanto, é longo não só para João, mas para todos os que moram com ele. É que a maioria dos residentes ainda identifica-se como pertencentes a um hospital. “Eu sou do Aragão Villar”, disse Jorge Faustini, 55, referindo-se ao lugar onde morou desde os 12 anos de idade e de onde só saiu após o fim das atividades, anunciado há alguns anos. “Já eu sou do São Domingos e da Casa de Saúde Esperança”, conta Ricardo Caetano, 32, um dos caçulas da casa.

Acostumar-se a uma rotina não vigiada é um dos exercícios permanentes. Mas, aos poucos, eles se apropriam do espaço que ajudaram a mobiliar. O grupo comprou com o dinheiro do próprio benefício os dois sofás da sala, um cinza e o outro bege com almofada floral. Juntos, os móveis custaram R$ 550 e a negociação foi conduzida por Ricardo. “Aproveita e coloca aí no seu papel que eu já fui à Festa Country”, exibe-se. Já a decoração do imóvel ficou por conta do talento de Jorginho. “Como a parede estava pura, eu falei: vou inventar uma moda”, revelou. Foi com os quadros pintados por Jorginho que a parede perdeu a monotonia do branco.

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Aos poucos, o espaço organizado com a ajuda de duas cuidadoras de saúde mental e uma diarista ganhou forma e jeito. A cada dia, João se adapta ao novo endereço. Antes, referia-se à residência terapêutica como “clínica”, agora já sabe que não é. E como em qualquer lar já reclama da rotina. “Aqui não posso tomar vários banhos por dia”, diz, queixando-se de regras construídas coletivamente. João ainda não sabe que na casa do Costa Carvalho a sua longa busca por referências sociais e afetivas chegou ao fim. Deixou de ser interno de um hospital para habitar um lugar que já pode chamar de seu.

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