Busca por um lugar na sociedade
Em 1983, quando Fernando Carneiro de Andrade, na época com 31 anos, foi internado em um hospital psiquiátrico da cidade, em função de problemas com bebida, ele trabalhava na empresa de tecnologia Ericsson. Naquele ano, o Governo federal decretava uma maxidesvalorização do Cruzeiro, unidade monetária do país. No esporte, o piloto Nelson Piquet tornava-se bicampeão mundial de Fórmula 1. Já o cantor Michael Jackson apresentava ao planeta sua lendária música “Billie Jean”, o single mais vendido do período. Em 2013, quando o técnico em eletrotécnica encerrou, então aos 60 anos, o ciclo de sucessivas internações – Fernando é o último paciente a deixar o Hospital São Domingos, fechado, no ano passado, em função de irregularidades no atendimento -, ele deparou-se com um mundo completamente diferente do que conhecia. No lugar do Cruzeiro, encontrou o Real como moeda brasileira. Nas pistas de corrida, o britânico Lewis Hamilton, o primeiro piloto negro campeão da Fórmula 1, estreava pela equipe Mercedes. Já o rei do pop estava morto há quatro anos. Ao ser resgatado do São Domingos e colocado em uma residência terapêutica, Fernando não tinha perdido só o contato com a realidade, mas também todos os seus documentos, tornando-se invisível para o mundo. Desde então, ele e outros 190 residentes de moradias assistidas lutam para conseguir um lugar na sociedade. Ao todo, 19 residências terapêuticas estão em funcionamento em Juiz de Fora, enquanto outras três passam pela fase de implantação.
“No hospital, eu me sentia horrível, porque tomava medicação pesada e ficava a maior parte do tempo deitado. Era muito desesperador. A situação ficou ainda pior no período que antecedeu o fechamento, já que o São Domingos estava sem estrutura e com uma alimentação sofrível. Também não havia boa assistência psicológica. Quando deixei a unidade, estava me sentindo uma pessoa inexistente para o mundo. Tinha perdido toda minha documentação. Ser inexistente é não ter referência nenhuma, não saber como vai ser o dia de amanhã, o que fazer para sair daquela situação, para onde ir e o que irá encontrar. É horrível olhar sua vida passada e ver que não se tem praticamente referência nenhuma do que você foi”, desabafa Fernando, que é formado pela Escola Técnica Federal do Rio de Janeiro. Além da formação técnica, ele chegou a cursar dois anos de engenharia na Universidade Santa Úrsula, instituição privada do Rio. Em Juiz de Fora, frequentou o ginásio no Colégio dos Jesuítas e morou no Bairu, em uma casa confortável e com um belo quintal que podia ser visto da janela do seu quarto.
O contato com a bebida se deu no início da adolescência, mas só aos 30 anos de idade, quando já estava doente, é que ele percebeu sua dependência. Neste momento, começou um ciclo de sucessivas internações. “Minha vida se resumiu a internações e recaídas”, comenta. Também morou na rua por dois anos. “É muito difícil viver na rua, por não ter lugar para dormir, comer, nem o que vestir. É humilhante. Para qualquer pessoa que já teve a condição de vida que eu tive, chegar a esse fundo de poço é humilhante mesmo. Na rua, a gente se afunda mais no álcool. A bebida é uma fuga. Você se embriaga, dorme em qualquer lugar. Quando estava sóbrio, eu olhava para mim e via um lixo humano. Hoje não me sinto mais assim, mas como uma pessoa que perdeu muitas coisas que não tem como recuperar”, revela.
Perda dos laços afetivos
Quando saiu do São Domingos pela última vez, o ex-paciente havia perdido o contato com os dois irmãos. A situação foi agravada com a morte da mãe, em 2010. Dentro do hospital, ele só recebeu a notícia do falecimento da genitora meses depois do enterro dela. “Foi muito duro não poder enterrar a minha mãe. Eu gostaria de ter me despedido. Se eu pudesse, teria pedido perdão a ela”, afirma Fernando, embora saiba que ela já o havia perdoado em vida. “Eu é que não me perdoo, porque, no fundo, sou responsável pela minha drogadição. Eu procurei socorro várias vezes, no AA (Alcoólicos Anônimos), na Igreja, mas não consegui fugir. É difícil viver com culpa, porque não se tem uma maneira de reconstruir as coisas. Não há como reatar os contatos íntimos com as pessoas que eu queria bem, que gostavam de mim. Estou afastado delas há muito tempo, eu perdi os laços afetivos completamente.”
Mesmo sem nenhum tipo de renda atualmente, Fernando tenta enxergar um futuro. Diz que ainda se sente “preso” na residência terapêutica, por não conseguir retomar uma rotina. Através da Associação Casa Viva, no entanto, ele conseguiu tirar outra vez a carteira de identidade e a certidão de nascimento e regularizou sua situação no cartório eleitoral, já que não votava há 16 anos. Por isso, no primeiro turno das eleições, ao apertar as teclas da urna localizada numa escola do Bairro Santa Luzia, o técnico experimentou uma pontada de esperança. “Me senti como um cidadão brasileiro, novamente, podendo colaborar com a democracia desse país. Estou feliz em voltar à sociedade aos poucos.”
‘Foi difícil ficar internada, senti muito medo, solidão’
Sandra Honório da Silva, 33 anos, tem menos tempo de residência terapêutica do que Fernando. Mudou-se em dezembro do ano passado para uma das dez casas sob responsabilidade da Associação Casa Viva, no Bairro Santa Luzia, Zona Sul, e, ao chegar, foi tomada de espanto. “Nossa, é uma casa comum. Estou livre do hospital”, relembra, sorrindo, dez meses depois de ganhar um endereço. Para quem passou 18 dos 32 anos de idade internada em hospitais psiquiátricos da cidade, sentir alegria no lugar do medo é uma novidade com a qual ela quer se acostumar.
“É a primeira vez que não tenho uma cama e um armário de ferro”, diz a ex-paciente, ao tentar descrever a experiência da moradia assistida. Filha de uma moradora de rua, Sandra ficou até os 7 anos de idade ao lado da mãe, ambas dormindo ao relento na maior parte das vezes. Aos 5 anos, elas foram morar em um imóvel cedido por uma entidade religiosa, mas, no lugar de um lar, encontrou só paredes de tijolo. Água, luz e esgoto não existiam. Para piorar, mãe e filha foram expulsas por bandidos que atearam fogo em peças de roupas penduradas no varal. Dois anos depois, com 7 anos, Sandra passou a viver com uns tios. Quando completou 13 anos, foi internada com depressão no São Marcos, hospital psiquiátrico com descredenciamento indicado pelo Ministério da Saúde em 2007, após o Programa Nacional do Sistema Hospitalar (Pnash) considerar a estrutura insatisfatória para funcionamento. De lá, migrou para o Pinho Masini, com descredenciamento anunciado pelo órgão ministerial na mesma época do São Marcos e, por último, esteve internada na Clínica Aragão Villar, fechada em janeiro de 2013 pelo mesmo motivo que as outras duas unidades. “Foi muito difícil ficar internada nesses hospitais, senti muito medo, muita solidão. Essa casa terapêutica foi uma porta aberta, pois há muito tempo eu queria sair do hospital psiquiátrico para nunca mais voltar”, afirma a mulher que diz não ter encontrado apoio na família que a criou. “Nunca me senti bem na casa da minha família. A partir do momento que não se é filho, não se tem aquele amor que precisa, como o afeto de uma mãe ou de um pai. Já no hospital, conheci muitas pessoas que não precisavam estar lá, algumas com deficiência mínima, mas que seus familiares internavam em hospital psiquiátrico, porque não a queriam dentro de casa, porque não tinham amor”, destaca Sandra.
Novos passos
E, apesar de ter agora o que classifica como qualidade de vida, a moradora se esforça para dar novos passos. Comprou cadernos para voltar a estudar – ela parou na sexta série do ensino fundamental -, mas, antes, precisa ser reconhecida como cidadã. Como nunca teve carteira de identidade, ela enfrentou obstáculos para retirar, aos 33 anos de idade, o seu primeiro registro geral. Foi cinco vezes à Câmara Municipal para conseguir o documento. Em uma delas, a funcionária espantou-se: “Como você conseguiu viver todos esses anos sem identidade?”, perguntou a mulher. Apesar da surpresa diante da situação de Sandra, a história da ex-paciente não é exceção. Voltar a existir para a sociedade é um desafio comum para quem foi institucionalizado por longos anos.
Diante do estigma que ainda marca pessoas com transtorno mental, Sandra dá um recado. “A sociedade deveria se conscientizar e se colocar no lugar de um doente mental. Muitas vezes, ele precisa apenas de uma chance, do apoio de uma casa terapêutica. É muito bom respirar liberdade”, diz. Cuidadora de uma residência terapêutica, Lúcia Cândida Oliveira, 53 anos, diz ter aprendido com os moradores a lição que Sandra quer ensinar. “Eles me ensinaram a ser mais humana, que eu posso me doar.” De acordo com a psicóloga Taísa de Araújo Serpa, 33, a aposta no sujeito é o passo mais importante na transição de paciente para morador. “Acreditar que essas pessoas podem tornar-se sujeitos de direito e desejo faz toda a diferença.”
Para Sandra, que agora exibe sua identidade, este é apenas o início da mudança. “Consegui uma coisa muito importante. Com certeza, este é o começo da reconstrução da minha história. Eu, que já me sentia muito importante até aqui, estou mais”, diz, sorrindo. A moradora também vai tentar na Justiça o cancelamento do seu processo de curatela, que garante que o seu benefício seja recebido por uma tia que está em endereço não localizado.
Necessidade de solidificar estrutura
Parece simples, mas respirar liberdade demanda a criação de uma estrutura ainda em construção em Juiz de Fora. Apesar das residências terapêuticas serem uma realidade, para elas funcionarem adequadamente, é necessário que os cuidadores passem por processo formal de capacitação, e seus moradores consigam acessar, como qualquer outro cidadão, a rede de atenção básica, que é a porta de entrada para qualquer serviço. Na prática, as unidades de atenção primária à saúde e as que integram a rede de saúde convencional precisam estar capacitadas para integrar ao atendimento os usuários da saúde mental, a fim de que eles encontrem assistência fora dos serviços especializados em psiquiatria.
“Há a necessidade de a saúde mental se reestruturar para, junto com a atenção primária, atender esses pacientes integralmente”, admite a coordenadora do Departamento de Saúde Mental, Andréia Stenner. Por sua vez, a própria rede de saúde mental precisa ser remodelada para atender à recém-criada rede de atenção psicossocial, que prevê o atendimento por território e inclui os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), os serviços de residência terapêutica e a rede de atenção hospitalar, cujos leitos para a saúde mental foram pactuados junto ao Ministério da Saúde.
Desta forma, além das 22 residências terapêuticas já em término de implantação, outras deverão ser criadas. Pelo menos essa é a intenção do secretário de Saúde, José Laerte Barbosa, que recentemente fez uma chamada pública que previa até 30 novas residências em Juiz de Fora. “O Ministério da Saúde ainda não disponibilizou para nós o recurso para criar novas residências, e, além das 22, precisamos de pelo menos mais 16. Como temos recursos acumulados na saúde mental, independentemente de o ministério liberar o recurso ou não, nós vamos fazer.”
Em relação à rede hospitalar, a ideia é que o Hospital João Penido reserve 25 leitos para a saúde mental para o socorro às crises e para o atendimento de intercorrências relativas ao uso de álcool e outras drogas. O Ana Nery ficaria com 24 leitos de referência e o Serviço de Urgência Psiquiátrica, no HPS, contaria com mais 20, além de 16 leitos de retaguarda dos Caps Álcool e Drogas e do Caps Casa Viva.