Professora se afasta de sala de aula após ameaça de aluno
Psiquiatra que trata de docentes diz que categoria sofre agressões e está acuada
Quando passou pelo corredor da escola, a professora de História e Geografia da rede municipal de Juiz de Fora, J., 40 anos, notou que os alunos de uma das salas de aula estavam sozinhos. Ao entrar, para saber o que havia ocorrido, ela descobriu que o professor do horário tinha ido levar dois estudantes até a direção por causa de uma briga. Preocupada com as reclamações contra aquela turma do ensino fundamental, ela começou a conversar sobre o futuro. Mas foi desafiada por um menino de 12 anos, que sugeriu que eles não precisavam da escola porque poderiam vender drogas. Esgotada, após um dia cheio de trabalho, J. respondeu que essa opção deveria ser discutida em casa, entre eles e seus pais. A resposta dela gerou uma reação de ódio no adolescente que disse ver no tráfico uma forma de ganhar dinheiro. Irado, ele partiu para cima dela. Com medo de ser agredida, saiu correndo. O menino de 12 anos correu atrás dela e, como não conseguiu alcançá-la, fez uma ameaça. “Sua vagabunda, piranha, vou explodir sua cabeça”, gritou. Chocada, J. ligou para a polícia sem sucesso. Desnorteada, pegou suas coisas e saiu. Foi a última vez que pisou na escola. Afastada da sala de aula há mais de dois meses – o INSS concedeu a ela licença médica de seis meses, ela não voltará mais para o local onde foi humilhada publicamente. “Nunca pensei que viraria estatística”, desabafou a mulher que tem 15 anos de docência e que registrou boletim de ocorrência no mesmo dia do ocorrido.
Para a Secretária de Educação de Juiz de Fora, Denise Vieira Franco, o episódio é um caso isolado na rede municipal. “Raros são os casos de agressão de aluno contra o professor. Se tivemos cinco casos esse ano foi muito. Existem os problemas relacionados ao que estamos vivendo no mundo, e isso tem interferido em todos os lugares. Não é só na escola pública, mas nas relações, pois a intolerância faz parte do mundo. No entanto, a relação das escolas municipais com a comunidade demonstra um entrosamento muito grande. Elas (as escolas) não têm vigias, e é raro os casos de vandalismo. Há uma relação de proximidade”, assegura.
Apesar de a secretária descartar a existência de uma violência disseminada, o episódio no qual J. foi vítima apenas confirma o que constatou o Instituto Nacional de Pesquisa Econômica e Social da Inglaterra ao analisar, em 35 países, a opinião de mais de 30 mil pessoas na faixa etária dos 16 aos 64 anos e de mais de 5.500 professores: o Brasil é a nação que menos valoriza o professor. O resultado do Índice Global de Status de Professores, criado em 2013, aponta que, em matéria de respeito, o país está na lanterna.
Última posição
Embora, no cenário global, tenha havido uma melhora na percepção do status dessa categoria, por aqui o resultado é desastroso. O país deixou a penúltima posição, entre 21 países pesquisados em 2013, para a última cinco anos após a primeira avaliação que mede o prestígio dos docentes. “Nunca tirei licença na minha vida, nestes 15 anos, a não ser licença-maternidade. É isso que mais chateia, porque a gente está na escola para trabalhar. Eu, uma professora de 40 anos, e ele, um menino de 12 anos disposto a me agredir. É humilhante. Ninguém sabe o que é lidar com aluno que debocha da sua cara, que pega uma prova e entrega em branco”, desabafa J., que precisou de ajuda médica para lidar com o que ocorreu na escola onde trabalhava.
Na ocasião dessa entrevista, realizada em outubro, J. disse que não se sentia em condições de voltar para a sala de aula. “Às vezes, tenho vontade só de ficar no meu quarto. É uma incerteza, o que vou fazer da minha vida? Eu não sei se estou preparada para voltar para sala de aula. Não estou preparada para chegar naquela escola e dar aula, ainda mais para aquela turma. Não estou preparada para escutar os deboches que eu escutei”, afirmou. J. também se queixou da forma como foi tratada na Secretaria de Educação. Segundo a professora, ela esperava mais apoio.
No entendimento da secretária de Educação, Denise Franco, porém, o tratamento dispensado a J. foi adequado. “Ela esteve na secretaria cinco vezes. No entanto, queria que o aluno fosse tirado da escola, mas o que a professora não entendeu é que é um direito da criança estar na escola. Por isso, ele foi encaminhado para atendimento psicológico, e a família atendida na Secretaria de Educação, onde o estudante participou de uma atividade pedagógica. Além disso, continuamos fazendo o acompanhamento do menino, e a escola tem realizado outros procedimentos. Temos que esgotar todas as possibilidades. A saída da professora da escola foi motivada por uma situação particular”, alegou. Em 2019, J., que tem dois vínculos públicos, vai dar aula em outra escola da rede.
Intimidada pelo Facebook, professora pediu ajuda na escola
Outra professora da rede municipal que prefere ter o nome mantido no anonimato também viveu, este ano, uma experiência difícil. Ela foi ameaçada por um jovem de 16 anos pelo Facebook. O adolescente, que não é aluno da escola onde ela trabalha há quase 20 anos, disse que se a professora continuasse a falar de política em sala de aula iria se arrepender. Acontece que L. é professora de História e não tem como não contextualizar a matéria sem abordar a realidade do Brasil. “A escola não é um mundo à parte, não é uma ilha, ela é um recorte do social, as coisas que acontecem do portão para fora da escola têm reflexo no universo escolar, incluindo as intolerâncias que existem dos portões para fora. Há realmente um enfrentamento, uma tentativa de silenciamento, de intervenção na prática pedagógica do professor, como se alguns assuntos não fossem para a sala de aula”, observa L.
A docente explica que a comunidade escolar tem autonomia para ir até a Ouvidoria da rede municipal de educação e levar demandas sobre as práticas pedagógicas, mas lamenta que o diálogo com a escola esteja sendo contornado, o que ajudaria na resolução de muitos conflitos. “Felizmente, na minha escola, o professor nunca responde sozinho. Ele tem um aparato atrás dele. Tenho uma coordenação e uma direção cuja primeira postura deles é a escuta, por isso, digo que vivo uma situação atípica. Isso dá uma sensação de acolhimento, porque eles não são particularistas. O desejo deles é apurar o ocorrido e buscar as instâncias possíveis para que a questão chegue a uma solução”, analisa.
Apesar de a situação ter sido contornada, L. vê com preocupação o atual cenário no qual o professor brasileiro está mergulhado. “O que aconteceu comigo veio da comunidade escolar, de uma pessoa que não está na minha sala de aula, que não conhece o meu trabalho pedagógico, que não conhece o que eu faço e que se sentiu plenamente confortável para ir até as redes sociais e me abordar. Veio de um adolescente que faz coro a um discurso que tem sido muito recorrente nas escolas: o de que o professor não pode trazer ideologias para a sala de aula. De que a educação não pode ser ideológica. O que está se chamando de ideologia? Qual é o projeto educacional que a rede oferece? A rede municipal tem um currículo estruturado para todos os níveis de ensino, e a escola tem um regimento escolar. Não fazemos aquilo que a gente quer, do jeito que a gente quer. Não tocar em determinados temas rompe com aquilo que é o elemento fundamental da formação escolar que é a formação da cidadania, a preparação para o mundo.”
Números locais não refletem realidade de enfrentamento
Nos primeiros seis meses deste ano, 2.280 atestados médicos da rede municipal de educação foram apresentados na Secretaria de Administração e Recursos Humanos (SARH). Significa que 40% da rede entraram com atestados médicos em algum momento nesse período. A secretária Andreia Goreske afirma que o percentual cai pela metade quando é avaliado individualmente. É que muitos professores têm dois vínculos empregatícios, então um atestado pode ser contabilizado duas vezes. Em um universo de 5.700 docentes, Andreia considera pequeno o número de 2.280 atestados. Além disso, a doença psíquica não é a maior entre as causadoras do afastamento. No caso da rede municipal, ela ocupa a sexta posição.
De acordo com a secretária, a doença que mais tira os professores municipais da sala de aula é a do aparelho respiratório, que corresponde a 395 atestados. A segunda causa é a questão osteomuscular, e a terceira está relacionada aos olhos e anexos. As questões psicológicas ficam em sexto lugar, correspondendo a 76 atestados recebidos entre janeiro e agosto entre os quase 2.300 apresentados.
Apesar de a depressão não liderar a lista de casos, Andreia diz entender a necessidade de investir em políticas públicas que resultem na melhoria da qualidade de vida dos educadores e na diminuição de casos de licença. “A gente tem que cada vez mais diminuir isso, porque isso é ruim para o indivíduo e também é ruim pelo olhar pedagógico, por causa da interrupção e descontinuidade do conteúdo”, explica.
Política de recursos humanos
Apesar de haver professores eventuais para substituir os faltosos, a contratação só pode ocorrer por um período mínimo de 12 dias. Significa que afastamentos rápidos nem sempre são cobertos. “A gente está tentando trabalhar com esse potencial, esse capital (humano) que a gente tem, para melhorar o quadro (de adoecimento). É interesse da Prefeitura ter uma política de recursos humanos, pensar no indivíduo. A gente é tão sensível a esse tema que temos um programa ao longo de quatro anos que quintuplicou de participantes voltado para a qualidade de vida de nosso servidor. A gente tem aula de dança, ioga, pilates, caminhada, zumba. Esse programa deu tão certo que agora está sendo lançado no CCBM um programa só para educação: ‘Saúde e qualidade de vida na rede municipal’, cujo foco é o bem estar e a saúde”, afirma.
Outro projeto piloto, o Rede em Ação, está sendo apontado como uma busca de soluções. Desenvolvido atualmente em duas escolas da rede, visa a garantir a mediação e a conciliação. Ao reunir diversos setores da Prefeitura no espaço escolar, o objetivo é priorizar o diálogo com os pais e a comunidade.
Psiquiatra diz que professor está abandonado
O psiquiatra Célio Alcides Amaral Domingues, que atualmente trata de seis professoras da rede pública e privada de Juiz de Fora, diz que um dos maiores problemas de uma sociedade sem cultura é a violência e a droga, uma forma de fuga diante de uma realidade na qual o poder público pouco consegue intervir. “A falta de cultura é fruto de uma má escola, na qual todos os recursos foram retirados dela e de um total e absoluto abandono do professor. O professor no Japão é o único sujeito que o imperador tem que reverenciar, tal é a importância que tem lá. No Brasil, o professor ganha uma miséria, é absurdamente explorado e não tem tempo para dedicar o humanismo dele à criança. Está cansado e acuado. Quando o indivíduo tem o título de professor, já deveria ter o respeito devido. No entanto, ao dar aula, o que ele encontra são meninos que não receberam nada até ali. Só agressão, ódio, tiro. O menino que agride foi ensinado a ser violento. Não adianta colocar um policial em cada escola, o que adianta é valorizar mais as pessoas. Melhorar a qualidade de vida desses professores, dar a eles mais dignidade.”
Segundo Domingues, essa é uma categoria que padece de doenças existenciais. Ele diz que 99% dos professores que atendeu têm depressão e ansiedade em graus altíssimos, que os tornam incapazes, às vezes, de coordenar a própria situação pessoal. “Eu frequentei escolas públicas na minha infância e tive uma professora, chamada dona Eni, da qual me lembro como mãe e protetora. Antigamente, quando entrávamos no grupo escolar, éramos acompanhados quatro anos pela mesma professora, e isso era um ganho extraordinário, em função do vínculo construído. A dona Eni me acompanhou por toda vida. Quando eu me formei em Farmácia, ela mandou uma poesia para mim. Quando me formei em Medicina, ela vibrou. Falo dela como uma mestra que foi tão importante quanto meus pais. Então, esse tipo de cultura, de relacionamento, acabou”, lamenta o psiquiatra, que só acredita em uma mudança quando ela envolver um país. Para ele, tão nefasto quanto a violência é a corrupção institucionalizada, aquela que desvia verbas da merenda escolar, que rouba o dinheiro da construção de uma escola. “É preciso corrigir os problemas na raiz para gente chegar a um país que mereça respeito”, analisa.