Vírus HIV ainda é visto como um tabu


Por Guilherme Arêas

02/12/2015 às 07h00- Atualizada 02/12/2015 às 10h28

Guilherme Arêas

Se essa fosse uma reportagem sobre diabetes, hipertensão ou – sei lá – bronquite crônica, Jéssica, Pablo e Maria, personagens que ilustram essa reportagem, não precisariam ser protegidos por pseudônimos. Como são portadores do HIV, temem que a exposição possa prejudicar suas relações pessoais, amorosas e de trabalho. Isso mostra o quanto o vírus que causa a Aids ainda é um tabu em Juiz de Fora, cidade que teve aumento do número de casos. Em todo o ano passado, foram iniciados 261 tratamentos de HIV no Serviço de Assistência Especializada (SAE), do Programa DST/Aids, referência para a cidade e mais cem municípios da região. Em 2015, só até junho, já eram 207 pessoas diagnosticadas e com tratamento iniciado.

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[Relaciondas_post] Mais do que dados, números e estatísticas, as histórias pessoais dos pacientes revelam a complexidade da doença. Jéssica, Pablo e Maria contraíram o vírus em épocas distintas, mas dividem o mesmo temor pelo estigma que o HIV e a Aids ainda carregam na sociedade. A doença mudou desde 1981, quando os primeiros casos foram descobertos em homossexuais. O modelo fatal que assustou a população nos anos 80 e 90, principalmente ao vitimar artistas famosos, em nada se parece com a versão controlável de hoje. E justamente essa falsa percepção de que a Aids não é uma doença tão temida assim tem feito com que as pessoas se exponham mais aos riscos de contaminação.

 

‘Mandei fazer um túmulo, comprei caixão e roupa para o meu velório’

Jéssica nasceu homem, há 54 anos. Desde criança não se identificava com aquele corpo, que tratou de transformá-lo no de uma bela mulher. Em uma das viagens que fazia entre Brasil e Europa, ela se sentiu mal. “A cabeça meio que explodiu, e eu desmaiei.” Nos oito meses que se seguiram, ela ficou internada em um hospital na Itália, sem andar, sem falar e totalmente dependente de ajuda. O ano era 2002, e o diagnóstico veio em dose dupla: um câncer na cabeça, provavelmente em decorrência do HIV que carregava no corpo há cerca de dez anos, sem saber.

“Não sentia nada. Eu peguei (o HIV) de um policial que namorei durante 11 anos. Mas a Aids só se manifestou depois, com esse tumor. Fiquei assustada. O médico da Itália falou que eu ia morrer em 6 meses. Vim embora para o Brasil para morrer perto da minha família. Mandei fazer um túmulo no Cemitério Municipal, comprei caixão e roupa para o meu velório. Paguei tudo à vista. Acabou que o tempo foi passando, e eu enterrei meu pai e minha mãe.”

Fluente em oito línguas, Jéssica morou em 11 países da Europa e da África. Hoje, aos 54 anos, mora “sozinha e com Deus” em uma casa em Juiz de Fora, onde garante cumprir rigorosamente o tratamento. Os antirretrovirais andam sempre com ela, numa nécessaire que também acomoda remédios de coluna e da cabeça. A lesão resultante do tumor está regredindo, assim como os problemas de fala e locomoção. “Você entende as coisas que eu falo?”, preocupa-se, ao final da entrevista. Depois da resposta positiva, ela encerra: “Se as pessoas souberem que tenho isso, ninguém se aproxima mais de mim. Ninguém vai querer nem beber mais no copo que eu bebo.”

 

Preservativo é melhor forma de evitar transmissão

Pablo descobriu o HIV aos 29 anos, depois de emagrecer mais de 10kg e contrair uma infecção causada pela baixa imunidade, o que o levou a internação no hospital. Após a confirmação do vírus, iniciou o tratamento pelo SUS e teve o apoio do companheiro, que só não foi infectado porque o casal sempre prezou pelo uso de preservativo. Assim como Jéssica, a morte foi um dos primeiros pensamentos de Pablo. “Achei que podia ser qualquer coisa, menos HIV. A médica passou vários exames, recebi o resultado de todos, mas o de HIV não. Recebi uma carta, pedindo para fazer outro exame.”

Após a internação para tratar a infecção, Pablo iniciou o tratamento com antirretrovirais. “Uma pessoa normal tem de 500 a 800 de CD4, que é a célula de defesa do organismo. Na época, eu estava com 1. Hoje estou com cerca de 300”, conta, sobre a melhora na qualidade de vida. Maior do que o medo de ter uma nova complicação decorrente do HIV, Pablo teme os olhares de uma sociedade que ainda não aprendeu a lidar com a Aids.

O apoio ele encontra, por enquanto, em poucos amigos que sabem da sorologia; no SUS, onde faz todo o tratamento; e no namorado, o primeiro a receber a notícia após o diagnóstico. Pablo e seu companheiro formam o chamado casal sorodiscordante, quando uma das partes tem sorologia positiva e a outra, negativa. A convivência entre pessoas sorodiscordantes é totalmente possível, e o uso da camisinha é a melhor forma de evitar a transmissão.

“As pessoas ligam muito a doença com a promiscuidade. Eu nunca fui uma pessoa promíscua. Peguei HIV de um namorado que tive e que foi o único parceiro que mantive relação sexual sem camisinha. Eu não o culpo. Foi uma escolha minha.”

 

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‘Meu sonho era arrumar uma pessoa que me aceitasse com HIV’

Maria é heterossexual, tem 37 anos e há 18 convive com o HIV, transmitido pelo grande amor de sua juventude, um homem que escolheu o crime como profissão. Um drama familiar a fez abandonar o tratamento, retomado há apenas um mês. Maria contraiu HIV quando ainda se chamava o soropositivo de “aidético”, termo que não se usa mais. “Uma vez, namorei um rapaz durante uns três meses. Nesse tempo, falei que precisava contar uma coisa para ele. Ele dizia que já sabia o que eu tinha para contar e que não se importava. Mas ele achava que eu tinha sido garota de programa. E eu achando que ele já sabia que tinha HIV. Na hora, fiquei feliz. O meu sonho era arrumar uma pessoa que me aceitasse com HIV, porque já levei muito não. Algumas pessoas têm nojo da gente. Quando comecei a contar a minha história para ele – igual estou te contando agora -, ele começou a cuspir no chão.”

Vários namoros de Maria não foram adiante quando ela revelava sua sorologia. Na época em que contraiu o vírus, ela não tinha preocupação em se proteger. Maria não imaginava que o primeiro namorado poderia ter o vírus. “Ele foi preso várias vezes por tráfico, e eu ia visitá-lo na penitenciária. Dormia lá com ele de 15 em 15 dias. Naquela época, não tinha tanto controle na prisão como tem hoje. Na última vez que foi preso, eu tinha 19 anos. Quando ele saiu da cadeia, ficou doente e internou. Foi quando a enfermeira entrou no quarto, e eu li em um papel que ele estava com suspeita de HIV. Um mês depois, ele morreu com tuberculose.”

Já com uma filha nos braços, Maria procurou ajuda. A criança não havia sido contaminada. Já Maria teve o diagnóstico confirmado. Determinada a lutar pela vida para cuidar da filha, enfrentou o preconceito e assumiu sua sorologia perante a família, amigos e pretendentes a namorado. O sonho de ter um companheiro que a aceitasse se tornou realidade há três anos, quando conheceu o atual parceiro, que não tem o vírus. Ao lado dele, passou pelo pior momento de sua vida. Depressiva, a filha, com então 18 anos, se atirou na frente de um caminhão, deixando um filho pequeno. E aí foi a vez de Maria desenvolver a depressão, que a afastou do trabalho e do tratamento com os antirretrovirais.

“A minha vida era a minha filha. Eu lutava contra essa doença para cuidar dela. Questionava muito a Aids na minha vida. Mas a dor da perda de um filho dói muito mais do que o HIV.” Após dois anos de uma depressão profunda, Maria decidiu voltar a se cuidar. Há um mês retomou o tratamento com os antirretrovirais. Apesar da depressão e dos efeitos colaterais dos remédios, ela acredita cumprir um importante papel na sociedade: o de exemplo. “Hoje, graças a Deus, não tem tanto preconceito, porque as pessoas estão vendo a Aids com outra cara. Mas, ao mesmo tempo, não estão dando importância mais, não usam preservativo. A Aids não tem cara. Magreza não quer dizer que a pessoa tem HIV e gordura não significa que ela não tem. Hoje tem remédio, a pessoa pode viver uma vida quase normal, mas há muitos efeitos colaterais. Eu ainda sofro isso. Não é brincadeira.”

 

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