Juiz de Fora corre risco de apagão na assistência social
Instituições tradicionais da cidade, que prestam serviços a idosos, crianças e adolescentes, e perderam processo seletivo, temem perder recursos públicos e, com isso, ter atendimentos comprometidos
Em atendimento ao marco regulatório que cria regras para parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, a Prefeitura iniciou a abertura das propostas das entidades que prestam serviços de assistência social. Um destes editais, que compõe o chamamento público 03/2017, voltado à convivência e ao fortalecimento de vínculos, apresentou como candidata mais bem pontuada a Adra, um braço da Igreja Adventista que atua em 11 estados brasileiros e 130 países. Na prática, caso a Adra seja confirmada como vencedora, grupos assistenciais tradicionais na cidade terão colocadas em xeque a continuidade dos trabalhos desenvolvidos.
Tratam-se das organizações que prestam serviços de convivência e fortalecimento de vínculo, atividades hoje prestadas pela Amac, como os Curumins, a Casa da Menina Artesã, a Casa do Pequeno Artista, a AABB Comunidade e o Pró-Idoso, além do Instituto Jesus, o Grupo Semente, o Instituto Dom Orione, o Abrigo Santa Helena, entre outros. Na abertura dos envelopes com as propostas, na quinta-feira da semana passada, a Adra venceu os 22 blocos previstos no edital, cujo resultado ainda não foi oficialmente divulgado. Enquanto isso, o trâmite do processo é contestado pelas demais entidades, que temem outras perdas nos editais futuros. Para se ter ideia, dos 16 editais previstos, a Adra participa de dez, dos mais diferentes vínculos, como acolhimentos institucionais para crianças, adolescentes e adultos, atendimentos psicossociais e abordagens sociais.
Temendo um apagão na assistência social no município, representantes de 28 entidades envolvidas nos processos se reuniram na última quarta-feira (31 de janeiro) no auditório do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS). Pontualmente, houve a explanação de trabalhadores e diretores de parte das instituições sobre o processo do chamamento público. Ao fim, deliberaram que será feita a tentativa de diálogo com o prefeito Bruno Siqueira (MDB).
Entre os questionamentos das entidades participantes do edital 3 está o fato de a comprovação do serviço desenvolvido não ter sido aceita pela comissão avaliadora. Esta foi uma situação enfrentada, por exemplo, por organizações conhecidas do município, como o Instituto Dom Orione, a ONG Semente e o Abrigo Santa Helena. As três teriam apresentado comprovações usando a nomenclatura “socioeducativo”, e não “fortalecimento de vínculos”, e por isso foram desabilitadas em seus lotes. Na reunião, a advogada Denise Saltarelli, que já está acompanhando o processo defendendo algumas entidades, pediu procuração para representar todas as presentes, sem cobrança de honorários. “Entendemos que é a hora de nos unirmos, para sermos fortes. Há uma série de indícios de irregularidades que precisam ser apurados.” Ela acrescenta: “O Abrigo Santa Helena, por exemplo, abriga hoje 145 idosos, além de atender a um número ainda mais expressivo de moradores do entorno, por meio do serviço de fortalecimento de vínculo. Mesmo assim, ele recebeu pontuação zero na comprovação, apesar de um certificado emitido pelo conselho. Disseram que o documento não era válido, enquanto a empresa vencedora emitiu apenas uma declaração simples da Prefeitura de Belo Horizonte comprovando que o serviço é desenvolvido na capital.”
Segundo a advogada, há outros indícios de irregularidades. Um dos mais graves, citados por representantes de outras entidades, está o fato de o envelope com a proposta da Adra para o edital 3 ter sido aberto no dia anterior, o que pode invalidar todo o processo. “São muitos outros indícios. A empresa está vencendo um número expressivo de serviços e apresentou uma única proposta, em um envelope único. As demais entidades apresentaram propostas individuais para cada edital.”
Conselho questiona falta de credenciamento
O presidente do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), Oswaldo Luiz Felippe de Andrade, questiona ainda o fato de a Adra não ser credenciada na entidade. “Fizemos uma audiência pública em agosto do ano passado com a participação do secretário. Ele explicou, na época, que qualquer entidade poderia participar do chamamento, mas nós entendemos que não, pois é preciso estar inscrito no conselho. A legislação não está sendo respeitada, e nós nos apegamos às leis. Para funcionar na cidade, todas as instituições precisaram passar por visita técnica. Como podemos atestar uma entidade que não atua no município? Temos a certeza da precarização dos serviços e da desassistência”, disse Oswaldo, citando a resolução 21/2016 do Conselho Nacional de Assistência Social. Nela, é informado que, para “celebração de parcerias entre o órgão gestor da assistência social e a entidade ou organização de assistência social”, esta deve estar, entre outras obrigações, “inscrita no Conselho Municipal de Assistência Social”. Para Oswaldo, o CMAS foi desrespeitado. “Como instância de controle social, deveríamos ter participado e discutido todo o processo, justamente para não haver prejuízos aos usuários e aos trabalhadores, que agora correm o risco de ser demitidos.”
Secretaria diz que chamamento público cumpre a lei
A Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) manifestou sua interpretação sobre a falta de credenciamento junto ao conselho. De acordo com a pasta, a inscrição é o requisito só no momento de firmar o termo de colaboração, sendo requisito para começar a executar os serviços de assistência social. “Cabe à SDS a avaliação do serviço das entidades que forem executoras dos seus serviços.” Ainda em nota, informou que o chamamento público cumpre o que está previsto na lei federal 13.019/14, também conhecida como Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, “que oferece oportunidades iguais e transparência no processo para firmar ‘termos de colaboração’ com as organizações.” Segundo a SDS, todas as entidades tiveram “acesso igual aos editais publicados no Atos do governo” e, sobre os resultados e pontuações, que pode culminar na judicialização do processo, respondeu que “os movimentos da sociedade civil fazem parte do processo democrático”, acrescentando que ainda existe a possibilidade de as que se sentirem prejudicadas ingressarem com recursos.
Até o momento, conforme a SDS, quatro editais tiveram propostas abertas, sendo já conhecidos os resultados dos documentos 1 (atenção em situação de rua) e 2 (promoção do adolescente aprendiz e jovem trabalhador), sendo vencidos, respectivamente, pela Fundação Maria Mãe e Amac. Os demais editais serão publicados nos próximos dias e, “para não paralisar o atendimento da assistência social em Juiz de Fora, foi pactuado um termo de colaboração emergencial com prazo de 180 dias”, que termina em 30 de junho. Ou seja, as vencedoras iniciariam os trabalhos a partir de julho.
Sobre os envelopes terem sido abertos de véspera, a SDS disse que a Adra apresentou um único malote para concorrer a todos os blocos do edital 3, sendo que ele foi aberto, conferido e rubricado no dia da primeira chamada, em que a Amac também concorria. “A abertura aconteceu diante dos representantes das duas entidades, fato este lavrado em ata. Nas outras chamadas, a questão do envelope da Adra foi explicada para as demais entidades e, novamente, lavrada em ata”.
Tipificação
Como a reportagem apurou, algumas entidades de Juiz de Fora foram desclassificadas por terem usado a nomenclatura “socioeducativo” no lugar de “serviço de convivência e fortalecimento de vínculo”. A SDS disse que a tipificação consta em uma resolução de 2009 e, como as entidades não comprovaram documentalmente a experiência, foram desabilitadas, em conformidade com as regras do edital. Com relação ao fato de o CMAS ter apresentado certificação comprovando a experiência, a SDS respondeu que este documento “não consta no edital como comprovação de experiência, e é de responsabilidade da instituição apresentar tais documentos”.
Por fim, ainda na nota, a SDS respondeu à reclamação da CMAS de não ter participado do processo. Segundo a pasta, a lei 13.019 não prevê a participação no conselho, pois ele é composto por representantes da sociedade civil, ligadas às entidades, e do governo, “o que poderia conceder informações privilegiadas e com antecedência para organizações interessadas em participar do chamamento. O Ministério Público Estadual, em resposta à demanda encaminhada pelo CMAS, pronunciou-se de acordo com as disposições do edital e arquivou o procedimento preparatório instaurado para investigação.”
Adra se apresenta como entidade intercontinental
Em visita de trabalho a Juiz de Fora, o diretor regional da Adra em Minas Gerais, Noedson Dorneles, esclareceu alguns dos questionamentos do processo ao jornal na tarde desta quinta-feira (1º). Ele confirmou que a Adra participa de dez dos 16 editais e tem interesse na cidade para expandir as experiências já desenvolvidas em outros municípios do país. Questionado sobre a possível perda de vínculos das comunidades atendidas com os serviços já prestados, ele garantiu que isso não vai ocorrer. Isso porque existe a intenção de absorver a mão de obra qualificada que atua nas entidades que ainda trabalham no município. “Não vou garantir a contratação de todos, mas sim dos melhores, a partir de um processo seletivo. Para nós, é muito importante a participação destas pessoas que já trabalham nas comunidades, justamente para não quebrar o vínculo.” Sobre a necessidade de abrir unidades físicas, ele afirma que isso não será problema. “Não haverá lacuna no atendimento. Teremos as melhores instalações para o serviço.” Mesmo assim, reitera que o edital ainda não foi conquistado, visto que a Prefeitura não registrou o resultado em Atos do Governo.
No momento, a Adra mantém a sede em Juiz de Fora dentro da Associação Adventista, anexa ao templo religioso da Rua Barão de Cataguases. “Estamos no município desde a década de 70, como um braço humanitário da igreja. No entanto, é importante esclarecer que atuamos de forma independente, com estatuto próprio. Para se ter ideia, em Belo Horizonte temos em nosso quadro de pessoal homossexuais e transexuais, justamente para conseguir aproximação com o público-alvo. Já nos questionaram se os idosos vão parar de dançar (no Pró-idoso), e é claro que isso não vai acontecer. Vamos aperfeiçoar todos os trabalhos já desenvolvidos, usando a nossa experiência”, disse o diretor.
Mesmo assim, não existem unidades de atendimento na cidade, com exceção de um apoio dado à Comunidade Terapêutica Pedra Fundamental, do Bairro Santa Efigênia, região Sul. “Temos um forte trabalho de voluntariado também, em diversas comunidades. Promovemos mutirão de Natal e desenvolvemos uma campanha com o ministério jovem da igreja para conseguir doadores de sangue e medula óssea.”
Sobre a falta de cadastro no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), Noedson disse que esta questão será resolvida. “A gente precisa estar cadastrada no Conselho Nacional de Assistência Social, e temos esta certificação. Quando formos assinar o contrato com a Prefeitura, estaremos com os trâmites para a certificação no município. Vamos seguir a lei.”
Judicialização
O diretor também foi questionado sobre a possibilidade de o chamamento público ser judicializado. Na sua avaliação, todas as regras foram respeitadas pela Adra. “A gente fica triste com esta situação. E os usuários e as pessoas que precisamos atender? Mas claro, cada um está no seu direito. Em outros municípios já tivemos questionamentos, pois tudo que é novo assusta. A Adra está em quase todo o mundo, somos um braço consultivo da ONU (Organização das Nações Unidas). Podem pesquisar, não encontrarão uma informação sobre falcatruas envolvendo a nossa associação sobre a nossa associação” garantiu, acrescentando que a entidade não é envolvida com partidos políticos e não ocupa cargos públicos.
Sinserpu teme demissões na Amac e desassistência
Presidente do Sindicato dos Servidores Públicos de Juiz de Fora (Sinserpu), Amarildo Romanazzi afirmou que a entidade que representa o funcionalismo público municipal tem acompanhado as polêmicas levantadas em torno dos chamamentos públicos de perto. O sindicalista entende que, nos editais em que a Associação Municipal de Apoio Comunitário (Amac) foi considerada inabilitada por questões relacionadas a documentos, teria ocorrido uma troca de papéis, o que inviabilizou a manutenção de serviços hoje prestados pela entidade, como a gestão de curumins, do Pró-Idoso e de alguns centros de referência (Cras). Com isto, de acordo com Amarildo, a Amac pode perder parte dos recursos financeiros aportados pelo Município, o que resultaria na demissão de funcionários da associação.
“Em alguns editais, a Amac teve uma pontuação superior à outra concorrente, mas acabou inabilitada por um erro na documentação apresentada. Aconteceu um atropelo que pode resultar em desassistência. Foi uma falha na entrega dos envelopes, uma vez que a Amac tem toda a documentação necessária, tanto que saiu vencedora em outros editais de creches, por exemplo. Não há coerência”, afirmou o sindicalista. Assim, Amarildo defende que o prefeito Bruno Siqueira (MDB) e sua equipe tenham “sensibilidade” para anular os editais em questão e refazer o chamamento público. “Foi um erro de documentação que pode acabar punindo diversas famílias”, considera, voltando a reforçar a possibilidade de demissões na Amac.
O temor de corte de pessoal na associação tem alimentado rumores nos corredores políticos da cidade. O próprio presidente do Sinserpu avalia que, em se mantendo o cenário atual, a redução dos repasses municipais da Amac poderá chegar a 30%. “Neste caso, vai haver demissões. A Amac não tem dinheiro em caixa”, considera. Amarildo revela ainda receio de que a situação traga, inclusive, prejuízos para os cofres municipais. “Se houver cortes, a Prefeitura é solidária”, afirmou, ressaltando ainda a possível existência de um passivo do Município para com a Associação de Apoio Comunitário. “A dívida é de cerca de R$ 4 milhões.”.
PJF já publicou resultado de dois chamamentos
Os Atos do Governo publicados no Diário Oficial Eletrônico do Município já tornaram públicos os resultados de dois dos editais lançados para a seleção de organizações da sociedade civil para a prestação de serviços de assistência social na cidade. Um deles, o que busca uma organização da sociedade civil (OSC) para a inclusão produtiva de pessoas em situação inclusiva, já teve até mesmo o seu resultado homologado pela Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS). Segundo decisão publicada no dia 12 de dezembro do ano passado, uma única entidade compareceu à data marcada para a abertura dos envelopes – no dia 5 de dezembro de 2017. Assim, a Fundação Maria Mãe foi declarada habilitada para a prestação do serviço por 15 meses ao valor de R$ 197.988,60. O termo de colaboração prevê ainda a possibilidade de prorrogação do acordo, via termo aditivo, desde que respeitado o prazo limite de cinco anos.
O outro edital cuja decisão já foi publicada no Atos do Governo – porém, o resultado ainda carece de homologação por parte da SDS – foi o para a seleção de OSC que ficará responsável pelo desenvolvimento do Programa de Promoção do Adolescente Aprendiz e Jovem Trabalhador. A abertura dos envelopes também ocorreu no dia 5 de dezembro, com a presença de representantes da Associação de Proteção à Guarda Mirim e da Amac. Mesmo sendo classificada em primeiro lugar, a Guarda Mirim acabou considerada inabilitada por não apresentar documentos exigidos em edital. Por outro lado, a Amac foi declarada habilitada e deve ser homologada para exercer a prestação do serviço por um período de 15 meses, com valores definidos em R$ 506.051,40. Uma vez mais, o edital prevê a possibilidade de prorrogação do convênio por até cinco anos.
Câmara irá debater editais
A partir de requerimento apresentado pelo vereador Roberto Cupolillo (Betão, PT), a Câmara deve realizar uma audiência pública para debater as questões relacionadas aos editais de chamamento público para a seleção de organizações da sociedade civil (OSC) para a prestação de serviços educacionais e de assistência social diversos. A solicitação do debate foi aprovada em plenário ainda no dia 27 de novembro de 2017. O encontro, no entanto, ainda não foi realizado devido ao volume de audiências públicas pleiteadas anteriormente para tratar de temas pertinentes a outros segmentos e assuntos de relevância na cidade. Diante do impasse em que se transformou a abertura dos envelopes, o próprio Betão acredita que a Casa dê celeridade ao agendamento da audiência, que poderia acontecer ainda no período legislativo deste mês, cujas reuniões ordinárias ocorrem entre os dias 15 e 28. Aqueles que defendem rapidez na definição de uma data entendem que o intuito de abordar possíveis efeitos dos chamamentos públicos já não existe, diante da necessidade de buscar soluções para suas consequências.
No requerimento que define a realização da audiência pública, Betão sugere que sejam convocados entidades como os sindicatos dos Servidores Públicos Municipais (Sinserpu) e dos Professores (Sinpro) e representantes da Amac e dos centros de referência de assistência social de nove bairros: Linhares, São Benedito, Centro, São Pedro, Benfica, Grama, Ipiranga, Costa Carvalho e Olavo Costa. O pedido do agendamento da discussão foi reforçado por movimentação da Rede Socioassistencial formada por entidades como o Educandário Carlos Chagas, o Instituto Jesus, o Grupo Casa, a Associação Assistencial Criança Feliz, o Imepp, o Instituto Veredas, o Instituto Maria, o Gedae, o Gente em Primeiro Lugar, a Associação Metodista de Ação Social (Amas), além de setores da Amac e os centros de referências de assistência social (Cras). O pedido foi formalizado por meio de ofício encaminhado à Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara, colegiado presidido por Betão, no dia 31 de outubro do ano passado.