Tokusai: os japoneses não são mais aqueles?
Analistas tentam explicar a verdadeira onda de escândalos que está abalando a reputação da indústria japonesa
Autopapo com Boris Feldman
A indústria japonesa sempre ocupou lugar de destaque no tema qualidade. Seu automóvel, por exemplo, é sinônimo de produto confiável, durável, de qualidade e baixo custo de manutenção. Mas esta imagem começa a sofrer arranhões, e a palavra “tokusai” (remessa de produtos sem qualidade) começa a ganhar espaço na imprensa internacional.
Em Kobe, cidade litorânea no Sul do Japão famosa por sua carne que vem de um gado criado no capricho, está sediada a terceira maior siderúrgica do Japão, a Kobe Steel. O bife continua – aparentemente – sem problemas, mas a siderúrgica admitiu ter falsificado certificados de qualidade em centenas de toneladas de chapas de aço, componentes e chapas de alumínio, peças de cobre e aço em pó. Mais de 200 clientes receberam este material sem as características especificadas e de resistência inferior à declarada. Foi um corre-corre na lista de empresas que recebem produtos da Kobe Steel, entre elas a Boeing, Ford, GM, Hitachi, Nissan, Mazda, Subaru e Mitsubishi. Além de aviões, trens de alta velocidade e automóveis que podem estar envolvidos, outras fábricas também correm riscos, pois a siderúrgica admitiu que estes problemas acontecem há quase uma década. A Kobe os atribui a falha humana e falta de programas computadorizados para controlar os operadores. Quando a notícia foi divulgada, no início de outubro, suas ações despencaram em cerca de um terço, reduzindo seu valor de mercado em US$ 1,6 bilhões.
Outra que teve problemas semelhantes foi a Nissan, que fez recall de 1,2 milhões de veículos por problemas de qualidade e paralisou suas linhas de montagem de automóveis no mês passado por vários dias. Os responsáveis pelo controle de qualidade não eram qualificados e deixaram passar automóveis defeituosos. No estande da Nissan no Salão de Tóquio (outubro), seu presidente, antes das apresentações de praxe, pediu desculpas publicamente pelos problemas para a imprensa internacional.
Antes da Kobe Steel e Nissan, um gigantesco problema de qualidade detonou outra japonesa: os air bags da Takata foram responsáveis por 18 mortes e dezenas de feridos devido a uma falha estrutural no disparador da bolsa inflável. Ao ser acionado no momento de um impacto, ele se desintegrava e atirava pedaços metálicos a quase 300 por hora contra motorista e ocupantes. Ou seja, ao invés de protegê-los, chegava a matá-los. A maior fábrica de air bags do mundo não teve fôlego financeiro para bancar mais de 100 milhões de recalls e quebrou.
No ano passado, diretores da Suzuki e Mitsubishi se demitiram após a comprovação de que ambas falsificavam documentos relativos ao consumo e emissões de seus automóveis. Em 2010, a Toyota realizou recall de quase 10 milhões de carros devido a problemas no acelerador de vários de seus modelos. Dotados de “vontade própria”, eles aceleravam sem serem pressionados pelo motorista. A filial brasileira da empresa negou a falha aqui, mas foi forçada a realizar este mesmo recall pelo Ministério da Justiça.
Como explicar esta repentina maré de escândalos numa indústria tão confiável como é (ou era) a japonesa?
Analistas dentro e fora do país tentam entender, mas em princípio atribuem esta sucessão de problemas a aspectos culturais, que desestimulam operários a questionar práticas antigas a seus superiores. A nível gerencial, o foco é no faturamento e rentabilidade da empresa, evitando mudanças onerosas de processos.
A indústria siderúrgica japonesa foi também muito pressionada pela concorrência na Índia e na China, o que a forçou a exigir mais dos operários, reduzir custos e prazos de entrega. Nos últimos dez anos, alguns funcionários chegaram a reportar problemas a seus superiores, sem que se tomasse nenhuma providência.
Como diz o ditado: “Engana-se a alguns durante muito tempo ou a muitos durante algum tempo. Mas impossível enganar a todos o tempo todo”.