Correndo para vencer
“Seja a mudança que você quer ver no mundo”. Imagine se todos nós resolvessem seguir à risca a dica do pacifista Mahatma Gandhi? É possível que tivéssemos, então, um mundo bem melhor, onde solidariedade, gentileza, tolerância, compaixão e humanidade deixariam de ser uma exceção. Quem nunca desejou isto? Quando lemos uma notícia trágica no jornal, pensamos que o mundo não tem jeito, porque as pessoas não têm jeito. Ficamos desanimados, desacreditamos que tempos melhores possam surgir. Mas quem nunca sentiu aquela pontinha de esperança, quando um amigo compartilha nas redes sociais a bela foto de um cachorro, adotado depois de ter sido encontrado na rua todo machucado? E quando um amigo do amigo que está fazendo um trabalho voluntário em um país da África compartilha imagens das crianças sendo alfabetizadas ou outro alguém pede apoio para uma campanha de arrecadação de alimentos e brinquedos para uma família que passa por momentos difíceis? Quem nunca? Se é assim, então podemos acreditar que a humanidade tem jeito e crer nisto faz toda a diferença.
A Tribuna acredita. Nestes tempos de tanta hostilidade, quando a polarização política faz com que muitas conversas, sejam off ou on-line, viram uma luta verbal, quando a cultura do ódio pelo diferente se transforma numa prática diária, quando a insegurança nas ruas e residências nos mantém aprisionados em nossas próprias casas, nos propomos ir na contramão, buscando uma conexão com o que melhor podemos viver. A partir de hoje, aniversário de 166 anos de Juiz de Fora, o jornal lança o projeto Bem JF, abrindo mais espaço para o outro lado desta moeda. A cada semana, o leitor verá por aqui histórias de uma Juiz de Fora alegre, com relatos de projetos e iniciativas locais, individuais ou coletivas, que trazem algo de bom para a sociedade, que mudam vidas ou pequenas realidades, que fazem nossa cidade, cada dia, um pouco melhor. O propósito é compartilhar e dividir as boas histórias que estão sendo escritas, mostrando que, de fato, a solução talvez seja começar por nós mesmos.
De mãos dadas
Sob a influência do espírito olímpico, que nos circunda com a aproximação dos Jogos Rio 2016, a primeira história do Bem JF vem justamente do esporte. Consolidado como programa da Secretaria de Esporte e Lazer da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora desde 2013, o JF Paralímpico se mantém a partir do apoio de oito guias voluntários, que doam parte de seus dias ao treinamento de 16 paratletas, visuais, mentais ou amputados. Há 15 anos trabalhando como voluntário, completados na última semana, o maratonista e servidor público federal Gedair Reis, 60 anos, é um dos responsáveis pela manutenção das atividades. Seu trabalho é acompanhado de perto pela esposa Célia Claveland, profissional de Educação Física, funcionária pública municipal e única remunerada no projeto. “Em 2009, durante uma corrida no Bairro Grama, vi um guia correndo com dois deficientes visuais. Perguntei a ele por qual motivo ele corria com dois e ele me falou que estava faltando guia. Falei que depois da Maratona do Rio de Janeiro iria trabalhar com eles. Estou no projeto desde 2011. Há um ano, meu filho veio conhecer o trabalho, se interessou e agora atua conosco”, lembra. Hoje, Gedair faz “parceria” com o atleta Bruno Guedes, 26 anos, que, por ter atingido uma velocidade superior ao seu guia anterior, teve que passar a treinar ao lado de um corredor com passadas mais velozes. “Eu era aquela pessoa que ficava parada, sempre de casa para a escola e da escola para casa. Em 2010, comecei a correr e a gostar. Fui vendo como era gostoso acordar cedo, vir treinar, participar das corridas, conhecer mais gente”, conta Bruno, que convive com a deficiência visual desde o nascimento.
Pelos gestos solidários, realizados durante todos esses anos, também em hospitais e instituições de caridade na cidade, Gedair foi um dos 64 escolhidos para conduzir a tocha olímpica durante passagem recente por Juiz de Fora. A indicação foi feita a partir de amigos, que, através de e-mails, apresentaram a história do maratonista aos organizadores do evento.
A partir da relação de confiança entre guia e guiado, Gedair e Bruno desenvolveram um jeito particular de cruzar a linha de chegada. Nos metros finais das corridas, os dois se separam e, orientado pelo som de palmas, o paratleta completa sozinho seu percurso. “Isso para mim é uma sensação de liberdade. Você conseguir chegar sozinho, cruzar o tapete de chegada. Me emociono a cada corrida”, revela Bruno.
Hoje, 18 quilos mais magro, Bruno é um dos destaques locais nas provas do Ranking de Corridas de Rua de Juiz de Fora e nos Jogos de Minas. Além das marcas alcançadas no esporte, o jovem se diz inserido socialmente, se vendo muito menos preso à limitação visual. “A partir das corridas, em 2012, comecei a andar sozinho pelas ruas. Foi uma das minhas conquistas, ganhar a independência de poder vir e voltar sozinho”, festeja. Se alguém me manda ir em certo lugar, respondo que é só me dar o endereço e a referência”, brinca. A conquista da independência também é festejada pela paratleta Maria da Consolação Jardim, 47 anos, também da classe B1 (cegos totais). “Saio do treino, vou para casa fazer almoço, arrumar a cozinha, arrumar a casa, lavar roupa, fazer tudo”, diz orgulhosa. “Não falho treino não. É muito importante porque ajuda muito na coordenação motora, na flexibilidade, no dia a dia para ir na rua”, avalia.
Contaminação do comportamento
Se no campo da emoção atitudes como essas acabam despertando um bem-estar nas pessoas, as iniciativas também são bem aceitas do ponto de vista racional. Para a psicóloga Iracema Abranches, doutoranda pela Universidad del Salvador, na Argentina, as relações interpessoais também acabam sendo aprofundadas. “Apesar da herança cultural do Brasil ser assistencialista, estamos numa fase de transição, cultural e comportamental, que vem gerando um ciclo de pessoas se ajudando. Já tem quem utilize uma ajuda inicial para se desenvolver. O indivíduo tem um subsídio momentâneo para, posteriormente, também poder ajudar”, explica.
Para ela, a partir da contaminação do comportamento, novos gestos solidários tendem a surgir na sociedade. “A psicologia social trabalha a questão do comportamento que se repete por ter sido valorizado pela sociedade. Se alguém do grupo tem um comportamento positivo, acaba contaminando para uma ação positiva. Quanto maior o incentivo e a valorização de ações positivas, maior a contaminação. Se alguém faz algo bom, isso tende a ser repetido”.
Já a socióloga e professora do Departamento de Ciências Sociais da UFJF, Beatriz Teixeira, aponta a aproximação de diferentes como outro ponto positivo deste movimentos: “Quando você cria a possibilidade de pessoas estarem próximas, convivendo entre si, isso ajuda a criar um ambiente mais coeso, mais colaborativo, o que é essencial para o bem-estar das pessoas e da própria sociedade”, destaca.
Universidade e centro de pesquisa mundo afora já comprovaram a eficácia de fazer o bem. Um estudo da Escola de Medicina da Universidade de Exeter, no Reino Unido, por exemplo, garante que atos voluntários ajudam a aumentar índices de satisfação e bem-estar, além de reduzir as chances de depressão. Perguntado sobre o porquê de dedicar horas e horas ao voluntariado, Gedair aponta o gesto como uma retribuição ao que conquistou na vida. “Com 5 anos, eu morava às margens do Rio Paraibuna, em Manhumirim. Consegui sair do Paraibuna, hoje sou servidor público federal, escritor, maratonista. Isso é um modo de retribuir tudo que Deus deu para mim e minha família”, resume. Para ele, os benefícios recíprocos são incentivadores para a sequência dos projetos. “Não tem ouro nem prata que pague. O retorno é o sorriso do amigo, um abraço. Quando a gente pensa que está ajudando, a gente está é recebendo em troca”, emociona-se.
Menos hostilidade, mais coletividade
Para a socióloga Beatriz Teixeira, com o individualismo cada vez mais crescente, observado a partir do crescimento das cidades, a saída para a mudança do conturbado cenário urbano tende a passar por processos solidários. “Pela maneira como as cidades têm sido ocupadas, a tendência tem sido segregar as pessoas de várias maneiras. Há uma necessidade muito grande da nossa parte, como seres humanos, de termos uma conversa mais agregária. Até porque o processo de individualização, com o consumo exacerbado e o acesso ilimitado à tecnologia, não tem nos feito tão felizes, como por vezes isso possa aparecer”, opina.
Ainda conforme ela, a tendência é que o campo do planejamento e das políticas urbanas apostem mais em iniciativas solidárias. “Vivemos num período de muita instabilidade, de muita disputa. Alguns trabalhos ajudam a criar um espírito de sociedade. Isso gera uma oportunidade de ter pessoas de classes, raças, credos religiosos, orientações sexuais, etc, vivendo num mesmo ambiente”, afirma. “Com maior ou menor modéstia, dependendo do lugar onde ocorre, as iniciativas vão crescendo e ganhando uma aceitação muito grande das pessoas. Quando se tem um ambiente de maior cooperação, você tem mais paz, mais equilíbrio e uma maior possibilidade das pessoas viverem juntas, apesar das suas diferenças, o que é essencial num regime democrático”.
Você pode fazer parte
De acordo com a supervisora de Esporte Adaptado da Prefeitura de Juiz de Fora, Karla Belgo, o programa JF Paralímpico encontra-se disponível tanto para o cadastro de novos guias, como para a inserção de mais atendidos. Os interessados podem procurar a Secretaria de Esporte e Lazer, no Bairro Santa Terezinha, ou ligar para o número 3690-7853.
“O programa está aberto para receber deficientes, para receber pessoas que queiram participar. Não tem custo, é simplesmente dedicar as manhãs. O importante é que você tira o deficiente de casa e vem inseri-lo conosco”, diz Gedair. “Se os pais puderem tirar seus filhos de casa e trazer para o esporte… Isso muda a vida de qualquer um, como mudou a minha e de muita gente”, recomenda Bruno.
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