O palco é a rua: conheça a história de Maikon Douglas Aragão

Na coluna 'Sem lenço, sem documento', conheça o artista de rua que toca violino nos semáforos de Juiz de Fora

Por Elisabetta Mazocoli, sob supervisão do editor Marcos Araújo

26/02/2023 às 07h00 - Atualizada 24/02/2023 às 17h32

Maikon diz que leva um pouco de cada lugar onde passou: “uma gíria dali, uma pegadinha daqui, um conhecimento de lá”, ressalta (Foto: Pedro Moysés)

O semáforo fica com a luz verde ligada por cerca de 40 segundos. Na correria do dia a dia, há filas de veículos esperando para continuarem seu trajeto, e aquele parece ser apenas um tempo destinado a ficar perdido. Os motoristas até olham pra frente, mas estão distraídos com os próprios pensamentos. No entanto, seja na esquina da rua Espírito Santo com a Avenida Rio Branco, na da Avenida Itamar Franco com a Rio Branco, ou mesmo perto do ponto do Canhão, próximo da Praça Antônio Carlos, lá está ele. Caminha uns poucos passos e se coloca bem no meio da faixa, dá bom dia ou boa noite para os carros e começa a tocar violino. Prefere músicas populares brasileiras, mas também conhece as clássicas e gosta de trazer um pouco de funk para as cordas. Consegue a proeza de chamar a atenção no meio do trânsito e mostra que está mesmo ali. Quer despertar olhares, ouvidos, emoções. Para Maikon Douglas Aragão, o palco é a rua.

Foi com 16 anos que Maikon saiu de casa, em Vila Velha, para conhecer o Brasil e viver a vida do modo que queria. Nesse caminho, passou de sul a nordeste, parando onde precisava e indo para onde indicavam. Se tornou um artista de rua – primeiro, fazendo malabares e artesanato. Aquele primeiro passo, como ele conta, foi essencial e exigiu muita coragem. “É um desafio mesmo. Você sai sem rumo, sem casa, sem dinheiro”, diz. Precisou conhecer bem mais sobre as pessoas e sobre a vida para que conseguisse seguir. “Mas tenho espírito aventureiro, sou sagitário, quero sempre liberdade”, conta. Essa vontade o guiou por esse caminho, até que, cerca de três anos depois de sair de casa, voltou para visitar os pais e se deparou com o violino da mãe.

PUBLICIDADE

Pensou que podia ser uma boa ideia aprender a tocar, mas, mesmo levando com ele o instrumento, ainda demorou uns bons anos para começar a tentar tocar e ver algum resultado nas suas práticas, já que, só de estrada, já se passaram 12 anos desde que deixou a cidade natal. “Eu estava na região de Goiás quando comecei a aprender. Conheci uma amiga que tinha kombi, e ali não tinha internet nem nada. Sem rotina fixa e sem distrações, comecei a treinar muito, a ensaiar demais”, relembra. Aprendeu tudo que sabe a partir de vídeos no YouTube e, principalmente, escutando música, tentando treinar o próprio ouvido para aprender. Foram dois anos até que ele se sentisse pronto para enfrentar a multidão de carros e tocar em público pela primeira vez.

Maikon nota com clareza que há um preconceito contra artistas como ele. “Eu toco na rua, e quem me vê aqui tocando violino já acha que eu sou da rua, que eu uso drogas, que o dinheiro que vai pra mim vai pra comprar drogas, coisa que não é verdade. Eu pago aluguel, pago minhas contas, tenho meu consumo e ajudo em casa quando eu posso”, diz. Além disso, há quem também comece a agir como se ele devesse estar em outro espaço. “Muita gente que me vê tocando violino no farol e me fala “Vai pra igreja, menino, vai pra uma escola, menino, seu lugar não é ai”, explica. Para ele, parte do que as pessoas pensam vem justamente do violino ser um instrumento clássico, o que faz com que muitos achem que é preciso estar dentro de uma escola de música ou outro espaço fechado e mais exclusivo para que se possa tocar algo do tipo. Em sua visão, no entanto, o atrativo da rua é justamente criar esse contraste e topar o desafio de tocar para quem estiver passando, para quem quiser ouvir. E arremata: “Gosto de variar. Fico no farol, porque é rápido, curto, e acho que ali a gente consegue levantar rápido o dinheiro”.

Ensaios e aprendizados

As músicas que toca, tanto pelo trajeto que fez quanto pela própria história, são para vários gostos diferentes. “Eu gosto de tocar músicas populares brasileiras, que as pessoas conhecem, que vão lembrar da infância, dos parentes, de alguma história”, conta. Cita, por exemplo, “Asa Branca”. Enquanto aprendia o instrumento, também se dedicou de forma mais intensa às músicas clássicas, as quais ele mesmo, vindo de periferia, não tinha tido acesso enquanto crescia. Mas também varia: “Toco alguns funks clássicos para quem é da periferia e também gosta de música, pra ver que é possível fazer isso no violino. Gosto de atingir essas pessoas”, diz.

A vida de mochileiro e andarilho, pegando carona e não sabendo pra onde vai ou por quanto tempo fica, também fez com que ele tivesse um conhecimento vasto do país e tentasse absorver da melhor forma a cultura de todos os cantos. “Me apaixonei pela cultura nordestina, pela rabequinha, pelo forrozinho pé de serra, aquele xaxadinho bem gostoso. Gostaria de voltar pra lá e focar esse ramo musical no violino. Gostei demais daquela região”, diz. Em Juiz de Fora, conta que ficou porque se apaixonou e “agarrou” aqui. E complementa, ainda, que o fato de o Brasil ser um país tão grande, com tanta diversidade e vivências, faz com que ele se sinta mesmo ter podido beber em várias fontes. “É diferente como as pessoas te recebem, como a música local e como as informações chegam em cada região…É uma experiência pra vida mesmo. Levo um pouco de cada lugar, uma gíria dali, uma pegadinha daqui, um conhecimento de lá”, pensa.

Arte do povo

Maikon ainda quer aprender mais sobre o violino. Conta que está apenas em um nível “mais ou menos”, e por isso quer tentar entrar no Conservatório de Música de Juiz de Fora. Mas das ruas sabe que não quer sair – é o local em que ele entende que sua arte pertence. “É um espaço pouco explorado, até mesmo mal visto. Mas eu gosto. E a gente acaba quebrando esse paradigma”, diz. É por isso que um dos momentos mais marcantes da sua trajetória como músico, para ele, foi quando uma mulher estava passando na rua, parou pra ver ele tocando, se lembrou do próprio pai e chorou. Ele confessa que chorou junto. “Na correria do dia a dia, todo mundo está sempre atrás de trabalho e compromisso, então quando alguém se dispõe a parar desse jeito e te retribui é a melhor coisa que tem”, diz.

Ele sabe que é esse tipo de experiência que o movimenta. “A rua é meu lugar mesmo. Não trocaria por um palco, por uma banda, por um lugar fechado onde só vão pessoas com condições muito favoráveis. Não me vejo nesses ambientes”. Para ele, que anda pelo Brasil inteiro, só é possível que a arte viva quando ela nasce onde nem sempre se espera, e onde ainda há gente que queira escutar. “Gosto de lugares que todo mundo tem acesso, porque todo mundo tem que ter acesso à música e à arte. A arte é do povo”, afirma. Não à toa, assim que acabamos a entrevista, ele pediu licença e voltou para o semáforo. Um novo sinal se fecha para os carros, e o violino recomeça movimentando de outro jeito o tempo e a vida de quem está lá passando a pé ou só mesmo parado, por vezes até assistindo.

O conteúdo continua após o anúncio

Tribuna

Tribuna

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade pelo seu conteúdo é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir postagens que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.



Leia também