Morrissey em dois tempos

Por Júlio Black

31/01/2018 às 07h02 - Atualizada 30/01/2018 às 14h51

Oi, gente.

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O ano de 2017 até que foi pródigo em termos de Morrissey, o homem que mais sofre (sofria?) no mundo e o maior popstar vivo. Tivemos o lançamento de seu mais recente álbum, o excelente “Low in high school”, e a cinebiografia (ainda inédita por aqui) “England is mine”. É uma boa oportunidade para compararmos o jovem que se tornaria um astro da música frente aos Smiths com o artista maduro, atualmente quase sexagenário, que seguiu uma das mais interessantes trajetórias do universo da música.

Seria ainda melhor se o filme não decepcionasse em diversos aspectos, mas vamos lá. “England is mine” (título tirado de um trecho de “Still ill”, presente no álbum de estreia dos Smiths) tem direção de Mark Gill e Jack Lowden (“Dunkirk”) como o jovem e ainda desconhecido Steven Patrick Morrissey. O longa propõe seguir os passos de Morrissey entre o final da década de 1970 e o início dos anos 80, antes do famoso encontro com Johnny Marr, mas perde-se no meio do caminho e não faz o merecido retrato do período de transformação do adolescente tímido, talentoso porém arrogante, em ídolo de toda uma geração.

Mesmo que não seja fisicamente parecido com o personagem que interpreta, Jack Lowden entrega um Steven Morrissey digno quando o roteiro permite. O filme também mostra alguns momentos importantes da vida do cantor, como o já citado encontro com Johnny Marr, sua efêmera participação nos Nosebleeds de Billy Duffy (aquele mesmo do The Cult), a timidez excruciante e a frustração de sentir que está ficando para trás e que sua oportunidade de brilhar está passando. Outro ponto positivo? Ao contrário de “Somos tão jovens”, sobre a juventude de Renato Russo, “England is mine” não tem aquelas frases feitas tiradas de músicas em que só falta alguém dizer “mmmm, isso daria uma música…”.

Por outro lado, sobram pontos negativos. Vários contemporâneos de Morrissey criticaram o longa pela ausência de figuras importantes na vida do cantor e a inclusão de outros tantos fictícios, sem contar a ausência da importância dos New York Dolls e David Bowie na vida do artista, que muitas vezes é mostrado de forma aborrecida, demasiadamente apática, quase uma versão made in England da Tristeza de “Divertida mente”, e que precisa ser arrastado pelos tornozelos pela amiga Linder Sterling (Jessica Brown Findlay) para tomar jeito na vida.

E falta música dos Smiths, claro. Na verdade, além de querermos mais do jovem Steven, o filme dos sonhos de todo o fã (a história dos Smiths) começa justamente quando “England is mine” termina – no encontro de Morrissey e Johnny Marr, que teve como “efeito colateral” a criação da mais popular banda inglesa dos anos 80.

Por sua vez, “Low in the high school”, lançado em novembro, é o retrato do artista em sua fase madura – não que Morrissey tenha abandonado seu gosto pela polêmica. Mas é admirável por mostrar que o mancuniano não é mais o mesmo sujeito dos primórdios da sua carreira, algo que já era notável desde o início do milênio e ficara mais evidente no trabalho anterior, “World peace is none of your business”, de 2014.

Mozz, lá nos anos 80 e boa parte da década de 1990, era tão inglês quanto o chá das cinco – mesmo com toda sua aversão à monarquia – e vivia num universo em que havia espaço apenas para artistas pop americanos e ingleses, a dramaturga Shelagh Delaney, os Irmãos Kray, os “Assassinos do Pântano” Ian Brady e Myra Hindley, a novela “Coronation Street”, Oscar Wilde etc. O mundo de Morrissey mal ultrapassava os limites das ilhas britânicas, mesmo que o resultado desse olhar para o umbigo britânico fossem clássicos como “The Queen is dead” e “This charming man”.

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Mas o tempo passou, Morrissey mudou-se para Los Angeles, passou um tempo em Roma, Paris, se tornou ícone pop da colônia latina nos Estados Unidos e dos mexicanos, e suas letras não mais se resumiam a estar deprimido por ter arrumado um emprego ou jogar conversa fora em cemitérios. O décimo-primeiro álbum do artista inglês vai ainda mais fundo nos temas políticos que o trabalho anterior, indo da repressão e violência policial na Venezuela em (“Who will protect us from the Police?”), o Brexit (“Jacky’s only happy when she’s up on the stage”), o antibelicismo de “I bury the living” e “All the young people must fall in love”, a crítica às oligarquias e monarquias “I wish you lonely”, a lembrança da Primavera Árabe (“In your lap”) e a menção à judia holandesa Etty Hillesum, morta no campo de concentração de Auschwitz durante o Holocausto, em “The girl from Tel-Aviv who wouldn’t kneel”.

Israel, aliás, faz parte da mais recente polêmica em torno de Morrissey. A última faixa do álbum é uma defesa e homenagem ao país do Oriente Médio, indo contra a corrente de artistas que criticam a repressão israelense aos palestinos.

Críticas à parte, Morrissey chegou aos 58 anos mostrando que ainda é um dos letristas mais instigantes da música pop, cantando como só ele sabe fazer e acompanhado por uma banda que segue afiada. Musicalmente, aliás, Morrissey vai rompendo as barreiras geográficas de outrora, com “Low in the high school” sendo um álbum de rock e pop com espaço para ritmos orientais e até mesmo referências ao tango. Nada mal para um artista que já havia aberto o seu coração para a música latina nos trabalhos anteriores e em seus shows.

Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

Júlio Black

Júlio Black

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