Entrando numa fria maior ainda

Por Júlio Black

27/05/2020 às 07h12 - Atualizada 25/05/2020 às 14h16

Oi, gente.

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Peço desculpas aos nossos 14 leitores (sim, ganhamos mais um) pelo título infame e tirado de uma comédia ruim, mas foi pensar no tema da coluna desta semana que o danado surgiu, e por aqui ficou.

E o tema, com certeza, não é o filme com Ben Stiller e Robert De Niro; vamos aproveitar o gancho do lançamento pela Netflix de “Expresso do amanhã”, que aconteceu na última segunda-feira (25), para lembrarmos o filme homônimo e a graphic novel francesa “O Perfura Neve”, que inspirou todas essas adaptações. No caso da HQ e do filme, recomendamos fortemente; ainda não tivemos de assistir à série, mas já ficamos desanimados com as primeiras críticas.

“O Perfura Neve” foi lançado na terra de Platini e Tigana em 1984 e mostrava um futuro em que praticamente toda a vida na Terra foi extinta por causa de uma catástrofe climática. O planeta virou uma gigantesca bola de gelo sabor neve, com as temperaturas batendo os 90 graus negativos. O que sobrou da humanidade foi colocado em um trem, o Perfura Neve, como um revolucionário motor de funcionamento eterno que roda o planeta sem parar, com os sobreviventes espremidos em seus 1.001 vagões e com a responsabilidade de ser “o último bastião da civilização”.

Foi a partir dessa premissa que o roteirista Jacques Lob escreveu para a revista “(À Suivre)” essa ficção científica com tons distópicos, que reproduz no confinamento de lata de sardinha um microcosmo da nossa sociedade, com os vagões da frente reservados às classes superiores e, à medida que chegamos aos vagões traseiros, encontramos aquela parcela da sociedade que costuma ser esquecida pelos políticos e os mais ricos, vivendo na miséria, marginalizados e oprimidos para manter o mesmo status quo de antes da tragédia.

A história de Lob usa o sci-fi para refletir sobre temas ainda atuais, que vão do meio ambiente à estratificação social, os conflitos sociais e políticos, a alienação e a exploração por meio da religião. A graphic novel ganhou duas continuações, passadas 15 anos depois da história original e com um novo comboio, o Desbrava-Neve. Elas foram lançadas em 1999 e no ano 2000, respectivamente, com roteiros de Benjamin Legrand – Jacques Lob morreu em 1990. Jean-Marc Rochette desenhou as três histórias, todas em preto e branco, e elas foram lançadas no Brasil em um único volume, em 2015, pela Aleph. O universo do Perfura Neve ganhou ainda uma terceira continuação e um prelúdio nesta década, com desenhos de Rochette e roteiros de Olivier Bocquet na continuação e Matz no prelúdio.

E aí temos Bong Joon-Ho, o sul-coreano que fez história no Oscar deste ano com “Parasita”. O diretor conheceu “O Perfura Neve” quando produzia “O hospedeiro”, na década passada, e levou a história para a tela grande em 2014, seu primeiro longa falado em inglês. Com bisonho título em português (“Expresso do amanhã”), a produção é levemente – e põe “levemente” – inspirada na graphic novel. Temos o trem, o planeta picolé, a estratificação social e conflito de classes, mas o roteiro muda todo o resto.

Bong Joon-Ho deixa claro logo no início que a humanidade ferrou tudo ao tentar acabar com o aquecimento global numa só tacada, e diminuiu o tamanho do trem de 16 quilômetros (!!!) para “apenas” 500 metros. Ele também mudou o protagonista (Chris Evans), que deixou de ser o cara que escapava do “fundão” e se via envolvido numa trama política para se tornar o líder de uma rebelião que queria chegar até a locomotiva e acabar com a opressão e desigualdades, viva la revolución coisa e tal.

“Expresso do amanhã”, dessa forma, engloba vários temas caros ao diretor sul-coreano, presentes em longas como “Okja”, “Parasita” e “O hospedeiro”: as desigualdades sociais, a invisibilidade e a revolta das parcelas mais carentes da população, a insensibilidade das castas superiores, a incompetência e indiferença de quem detém o poder e a violência resultante desse caldeirão. É um senhor filme de ação, drama e ficção científica; escuro, claustrofóbico, que ainda tem ares de videogame com os rebeldes alcançando os vagões dianteiros como quem passa de fase.

O longa tem ainda um senhor elenco. Além de Chris Evans, estão lá John Hurt, Tilda Swinton, Octavia Spencer, Jamie Bell, Allison Pill, Ewen Bremner, Ko Asung (“O hospedeiro”) e Kang-ho Song (“Parasta” e “O hospedeiro”). Para quem perdeu o longa quando foi exibido no Brasil, cinco anos atrás, ou tem vontade de assistir novamente, está no catálogo do Prime Video.

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Voltando à série da Netflix, os dois primeiros episódios da primeira temporada (serão dez) já estão na plataforma de streaming. A produção tem mais a ver com o filme que com a graphic novel, mas com umas mudanças que dá vontade de dizer “putz, que isso, mano”. O protagonista virou um ex-detetive (?) que vive com os miseráveis lá no fundão do trem, e por causa de sua profissão é recrutado para investigar um assassinato nos vagões dianteiros, descobre que tem um serial killer entre a multidão e vai ter que descobrir quem é o fatiador de gente.

Pois é, ah migas e ah migos, receio que transformaram “O Perfura Neve” em “Law and Order”. Nada contra as 372 séries do gênero criadas por Dick Wolf, mas parece que essa turma tem a obsessão em transformar boas HQs em dramas genéricos de detetive, a exemplo de “Lucifer” e “I, Zombie”.

Mas sei lá, né, vai que funciona.

Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

Júlio Black

Júlio Black

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