“Shangri-la” e “A bela morte”: quadrinhos franceses sobre o fim do mundo – e um pouco além

Por Júlio Black

20/05/2020 às 07h30 - Atualizada 20/05/2020 às 13h15

Oi, gente.

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Comentei uma ou duas vezes neste espaço que participo do podcast Papo de Quadrinho, e no sexto episódio (ouça!) indicamos seriados e HQs para as pessoas de bem que sabem que ficar em casa é essencial. Como costumo ser o elemento contraditório do programa, naquele momento em particular estava a ler zero quadrinhos por motivos de Antônio, home office, adaptação ao caos e o noticiário em geral.

Contratempos à parte, é claro que havia – e ainda continua a existir – uma pilha de HQs na mesa de cabeceira. Nesse pequeno Everest estavam duas graphic novels de sci-fi do francês Mathieu Bablet enviadas pela Sesi-SP Editora, “A bela morte” e “Shangri-la”, que se destacavam no topo da lista de coisas que esperava ler nestes meses de isolamento social e citei no episódio como futuras leituras. Eis que o Marcelo Naranjo, do podcast Confins do Universo e nosso convidado da vez, disse que já havia lido as duas e recomendava o material, porém com uma ressalva: ler “A bela morte” primeiro, pois “Shangri-la” era uma obra superior.

E não é que o Coach de Quadrinhos estava certo? Terminamos as leituras dos álbuns, e recomendamos os dois trabalhos. Mas sabemos que a grana está curta, então quem estiver a fim de conferir o trabalho de um dos novos talentos dos quadrinhos europeus (Bablet é da classe de 1987) pode seguir a recomendação do Naranjo e investir em “Shangri-la”.

(Rápido parêntese. Procurem pelo canal do Naranjo no YouTube, o… Coach de Quadrinhos. É muito bom.)

Publicada na França em 2016, “Shangri-la” começa um milhão de anos no passado e depois salta para alguns séculos do nosso futuro, com a Terra inabitável há centenas de anos. O que sobrou da humanidade vive em uma gigantesca estação espacial, propriedade da corporação Tianzhu (“Pai Celestial”, em mandarim). Como a Tianzhu é a dona do pedaço, a única escolha da moçada é trabalhar para a empresa e comprar tudo o que ela produz: celulares, tablets, roupas, comida, mil coisas. Na minha modesta opinião, qualquer semelhança com o crime de trabalho análogo à escravidão não é mera coincidência.

O autor carrega as tintas no lance da distopia, com a corporação controlando o populacho pelo incentivo desenfreado ao consumo e também com um modelo disfarçado de ditadura que faria a alegria de muito político por aí. A empresa controla a vida de todo mundo com mão de ferro, mas oferece migalhas de “liberdade” para não dar bug no “sistema”. Existe até mesmo um movimento rebelde que não é lá flor que se cheire, mas que a Tianzhu deixa realizar suas ações como válvula de escape a fim de não entornar o caldo social. O cenário fica completo com os animaloides, híbridos de humanos com outros mamíferos e que representam na história a população de segunda classe, aquela que vai sofrer preconceito, ser perseguida e agredida pelos boçais da vez.

Achou pouco? Pois os mesmos cientistas que evoluíram cachorros, gatos e afins também gostam de brincar de deus à enésima potência. Eles criam do nada uma nova espécie de ser humano, o Homo stellaris, que será enviada para Titã, uma das luas de Saturno e que passou por um processo de terraformação. O local para onde esses novos homens e mulheres serão enviados foi batizado como Shangri-la.

É nesse futuro de felicidade e liberdade customizadas que conhecemos o protagonista da HQ. Conhecido apenas como Scott, ele investiga acidentes com antimatéria que aconteceram em diversas estações de pesquisa da corporação e acredita que a Tianzhu é boazinha, coitado. Apesar de fiel ao patrão, o contato com os rebeldes faz com que Scott passe a se questionar se o mundo em que vive é tão perfeito assim, e daí para se envolver em uma trama de conspiração e revolução é um pulo.

As tramas de “Shangri-la” vão convergindo aos poucos, até chegar a um clímax que envolve reviravoltas e descobertas surpreendentes, violência gráfica, crítica ao consumismo e conformismo, as corporações, o capitalismo e regimes de exceção. Nada novo quando se fala desci-fi, mas muito bem realizado por Mathieu Bablet e pouco mais de 200 páginas.

“A bela morte” também é pó-apocalíptica e distópica, porém com os dois pés literalmente no chão. Enquanto a outra HQ tem o espaço como cenário, aqui a história se passa na Terra mesmo, depois que insetos alienígenas gigantes chegaram no nosso terreiro e passaram o rodo em geral. Acompanhamos os prováveis três únicos sobreviventes do extermínio da humanidade, que passam os dias, semanas e meses buscando comida e lugares seguros para ficarem, mas tudo na moita para os isentões não descobrirem que eles ainda estão vivos. Como o trio não se dá muito bem, a convivência fica ainda mais complicada em vários momentos.

A graphic novel foi publicada pela primeira vez em 2011, quando Mathieu Bablet tinha apenas 24 anos, e ganhou versão ampliada em 2017 – e é essa que a Sesi-SP Editora lançou por aqui. A história prende a atenção do leitor até o fim, mas seria melhor com protagonistas que provocassem mais empatia; ajudaria saber um pouco mais sobre o passado deles além do que é mostrado lá pelo meio da história. Mesmo assim, “A bela morte” tem o mérito de tratar de temas como solidão, depressão, suicídio e a fragilidade de nossa existência em meio à tensão da possibilidade do fim iminente.

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Mas se existe algo que é excepcional nas duas obras são os desenhos de Mathieu Bablet. O francês dá traços mais caricatos para os personagens, que parecem todos calçar sapatos e tênis tamanho 35, mas os cenários são pequenas obras-primas, de ficar minutos admirando cada página. Seja na Terra ou no espaço, o artista francês se preocupa com todos os detalhes possíveis dos edifícios, naves e estações espaciais, equipamentos ou trajes.

Há momentos em que os prédios de “A bela morte” criam labirintos claustrofóbicos, e outros em que os personagens parecem insignificantes em meio a toda a grandiosidade do espaço sideral que vemos em “Shangri-la”. Bablet também mostra talento dos bons no uso das cores, o que faz de “Shangri-la” e “A bela morte” trabalhos de fôlego – e nessa parte a Sesi-SP Editora também ajuda, com impressão e papel de qualidade.

O leitor pode até achar uma história mais interessante que a outra, mas em ambos os casos o espetáculo visual é garantido.

Ah, caso algum dos meus 13 leitores precise também de indicações literárias, começamos e gostamos de “A noite devorou o mundo”, romance em que Martin Page – sob o pseudônimo Pit Agarmen – narra a história de um escritor que provavelmente é o último sobrevivente de um apocalipse zumbi. Coisa rápida, menos de 130 páginas; comecei a ler no domingo à noite, e no momento em que escrevo a coluna (segunda-feira, antes do almoço) já havia passado da metade. Mas leia em casa, de preferência ouvindo nossa playlist “…E obrigado pelos peixes”, que continua uma simpatia só lá no tal do Spotify.

Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

Júlio Black

Júlio Black

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