“Zooropa”, um clássico que continua moderno

Por Júlio Black

13/12/2017 às 07h02 - Atualizada 12/12/2017 às 23h00

Oi, gente.

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Efemérides costumam ser uma mão na roda para o jornalista quando falta assunto, ou mesmo para fazer um panorama histórico de uma determinada época etc. e tal. Foi o que aconteceu em 2016, quando lembrei que 1991 havia sido daqueles anos especiais para a música, daí foi só fazer aquela busca no Google para relembrar clássicos do U2, My Bloody Valentine, Teenage Fanclub e boa companhia.

Pulemos para a última semana. Depois de passar alguns álbuns do U2 para o celular, foi hora de ouvir a minha dobradinha preferida dos irlandeses: “Achtung Baby”, de 1991, e “Zooropa”, de 1993. Depois de ouvir “Zooropa” uma, duas, três vezes, pensei que ele também merecia ganhar a sua reverência nesta coluna, mas aí fui olhar a data de lançamento: 5 de julho de 1993.

Maldição, ele só completa 25 anos de bons serviços à música daqui a sete meses.

Mas quer saber? A coluna é minha, escrevo sobre o que eu quiser, vai ser agora mesmo. Danem-se as efemérides.

“Zooropa” foi, se não me falha a memória, um dos três primeiros CDs que comprei. Os dois primeiros, isso é certo, foram “Vauxhall and I”, do Morrissey, e “Monster”, do R.E.M. Ou foi um dos dez primeiros, vai saber. Mas o fato é que tratou-se de grande surpresa saber que o U2 havia lançado um álbum menos de dois anos após “Achtung Baby” chegar ao mundo – principalmente porque internet era coisa que a gente sabia que existia por causa da mídia impressa, notícia demorava ou sequer chegava nessa canto do planeta.

Foi aquele sentimento de “whaaaaat?” ao ligar o rádio e, do nada, surgir aquele acorde esquisito de “Stay (Faraway, so close)”, se perguntar “mas esse é o U2 mesmo?” e se deparar, dias ou semanas depois, com a capa da versão em vinil de “Zooropa” na Mesbla.

Sim, é preciso ter vivido nas Eras Glaciais para se surpreender com um disco de vinil na Mesbla.

Mas o que levou o U2 a gravar um novo álbum tão rápido, sendo que desde “The Joshua Tree” o padrão dos irlandeses é demorar três anos entre um trabalho e outro? O fato é que Bono e The Edge, em particular, estavam pilhados após a turnê americana de “Achtung Baby” e tinham seis meses “de bob” antes do início da perna europeia, apropriadamente chamada “Zooropa”. Eles resolveram então gravar um EP em Dublin, na Irlanda, com quatro nova canções para apimentar o giro europeu.

Daí chamaram o parça Brian Eno mais Flood para as sessões de gravação, e o que seria um mimo para os fãs se tornou um dos grandes trabalhos da banda. Foram seis semanas de gravações antes do reinício da turnê, complementadas entre um show e outro, quando os quatro integrantes da banda voltavam até a Irlanda, gravavam e partiam para a próxima cidade.

O resultado é um disco com “D” maiúsculo. Discaço. O mais diferente e experimental já feito pelo U2, e ao mesmo tempo o mais europeu e o mais antenado com o mundo em transformação da época. Basta lembrar que a Alemanha havia se reunificado recentemente, a União Europeia tornara-se realidade, o comunismo estava moribundo, a internet dava os primeiros sinais de vida, e a saturação de imagens, informação e opções para o ser humano já era a marca da “ZooTV Tour”, a melhor turnê já feita pelo U2.

As dez músicas que entraram no álbum, das 20 que eles gravaram, mostram isso. Ficaram de fora canções mais convencionais, como “If you wear that velvet dress”, “Wake up dead man” e “If God will send his Angels” (que entraram em “Pop”, de 1997) e a brilhante “Hold me, thrill me, kiss me, kill me” e entraram canções heterodoxas, cruzamentos bem-sucedidos de rock alternativo, dance music, efeitos sonoros, rock industrial e música eletrônica.

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“Zooropa”, que abre o disco, parece algo mal sintonizado de uma estação de rádio dos anos 70, emulando o que havia de mais diferente há quatro décadas, ao mesmo tempo que tratava do futuro que havia nos anos 90. “Babyface” era uma balada obsessiva tanto em sua melodia quanto na letra, seguida pela estranheza de “Numb”: uma série de sons estranhos em que a voz de Edge, intencionalmente monocórdica e monótona, diz ao ouvinte “o que não fazer”. A mais dançante do disco, “Lemon” falava do homem moderno com uma batida que poderia ser classificada como “dance music europeia. O Lado A de “Zooropa” fechava com a belíssima “Stay”, em que a personagem diz sentir-se viva apenas quando seu companheiro a machucava.

A música seguinte, “Daddy’s gonna pay for you crashed car” tinha um trecho de fanfarra soviética tirado do álbum “As canções favoritas de Lenin”. A primeira impressão, a que ficou, é que a irônica canção era um misto de funk e blues cometidos por algum alemão insano; era também a canção que marcava a transformação de Bom em MacPhisto durante os shows seguintes da “ZooTV Tour”. “Some days are better than others” era mais uma reflexão sobre os então dias atuais, talvez a música mais próxima de “Achtung Baby”. “The first time” era uma reflexão sobre a história bíblica do Filho pródigo”, enquanto “Dirty day” homenageava Charles Bukowski.

Mas o melhor fora guardado para o final. “Zooropa” tinha por encerramento “The Wanderer”, canção pós-apocalíptica cantada por ninguém menos que Johnny Cash. Jamais houve e jamais haverá ser humano que consiga cantar com a devida carga emocional – e a inesquecível voz grave – versos como “Eu saí em busca, procurando pelo bom homem / Um espírito que não se entortaria nem quebraria / Que sentaria ao lado direito de seu pai / Eu saí caminhando com uma bíblia e uma arma / A palavra de Deus pesando em meu coração / Eu tinha certeza que e era o escolhido.”

Quase 25 anos depois, com o mundo transformado pela internet, satélites e o volume absurdo de informações que nos soterra diariamente, com a União Europeia sendo questionada, as pragas do protecionismo e o nacionalismo, a xenofobia e a intolerância, fake news, o desencanto dominante, “Zooropa” se mantém atual como poucos álbuns tão representativos de uma época conseguiriam. É ainda o registro daquela que foi a década mais criativa do U2, que se arriscaria quatro anos depois com o incompreendido “Pop” antes de fechar o milênio com o convencional – mas excelente – “All that you can’t leave behind” (2000).

Se quiser conhecer “Zooropa” melhor, um conselho: isole-se de tudo, coloque o melhor fone de ouvidos que conseguir e concentre-se em todas as nuances que aquelas dez músicas oferecem ao ouvinte. Se você não é fã do U2, duvido que sua opinião a respeito da banda continue a mesma.

É um disco que ultrapassa as efemérides e merece ser celebrado todos os dias.

Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

Júlio Black

Júlio Black

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