Pantera Negra e uma nação (ainda) sob seus pés
Oi, gente.
O Pantera Negra faz parte daquela longa lista de bons personagens criados pela Marvel que – por falta de espaço ou escritores não tão talentosos – ficaram relegados à condição de heróis de segunda categoria por muitos anos. A visibilidade que o personagem ganhou no cinema, porém, fez com que a editora americana voltasse a apostar no rei de Wakanda nos quadrinhos, e a Panini teve a feliz ideia de lançar a mais recente fase do herói em três encadernados que já chegaram às bancas e afins, aproveitando o lançamento de “Pantera Negra” nos cinemas na próxima semana.
Com o título “Uma nação sob nossos pés”, a publicação é excelente oportunidade para conhecer melhor o personagem criado nos anos 60 por Stan Lee e Jack Kirby, que surgiu como coadjuvante nas histórias do Quarteto Fantástico. Principalmente por não se preocupar em ser mais uma história em que o herói precisa enfrentar o vilão da vez: desta vez, T’Challa (nome de batismo do Pantera Negra) enfrenta a descrença do próprio povo em seu rei e as dúvidas que ele carrega consigo se é o homem certo para conduzir toda uma nação.
Outro atrativo do título fica por conta do autor. Quem escreve “Uma nação sob nossos pés” é o jornalista e escritor afro-americano Ta-Nehisi Coates, conhecido por livros de não-ficção como “Entre o mundo e eu” e por ser colaborador da revista americana “The Atlantic”, em que escreve sobre política, cultura e questões sociais. Apesar de este ser seu primeiro trabalho nas HQs e com ficção, Coates escreveu uma obra que se coloca acima da média dos quadrinhos tradicionais ao amalgamar o atual status do personagem à sua própria experiência com os desafios sociopolíticos do mundo real.
Para quem não acompanha os quadrinhos, Pantera Negra e Wakanda tiveram que enfrentar várias tragédias nos últimos anos. O país africano, que nos quadrinhos é o mais desenvolvido do mundo graças às suas reservas do (fictício) metal vibranium e considerada impossível de ser conquistada, entrou em guerra com a Atlântida de Namor, o Príncipe Submarino, o que resultou na morte de milhares de pessoas quando o país foi inundado; sofreu uma tentativa de invasão da Latvéria do Doutor Destino; e teve outros tantos milhares mortos quando a Ordem Negra de Thanos atacou o país.
Todos esses eventos acabaram por colocar em dúvida a confiança do povo em T’Challa. E motivos não faltaram: para começar, ele deixou o país nas mãos de sua irmã, Shuri, durante a invasão da Ordem Negra, e ela morreu para salvar Wakanda enquanto ele estava com os Novos Vingadores tentando impedir a destruição do Multiverso. Ainda por conta das incursões entre universos, ele precisou se aliar justamente a Namor, visto pelos súditos como o maior inimigo do país. Tudo isso fez com que os wakandanos vissem em T’Challa alguém mais preocupado com as questões externas do que preservar o poderio e as tradições de sua terra natal.
Por isso, algo antes impensável em Wakanda se tornou realidade quando diversos movimentos promovem um levante para tentar tirar o Pantera Negra de seu trono, alguns com o argumento de entregar o poder ao povo. Outrora integrantes da guarda de elite do soberano, as Dora Milaje se rebelam contra o rei e querem criar uma nação em que as mulheres não sejam mais exploradas; oportunistas estrangeiros como Ezekiel Stane querem aproveitar o clima de instabilidade para explorar as riquezas naturais do país; e um estudante rebelde, Tetu, ganha poderes místicos e quer fazer a revolução por meio da violência e do terror, tendo ao seu lado uma mulher com dons psíquicos capazes de potencializar os sentimentos das pessoas.
E quais os sentimentos latentes entre os wakandanos? Raiva e decepção em relação ao Pantera Negra, que terá que lidar com uma população que não mais acredita nele – algo que o próprio personagem carrega dentro de si. Ao mesmo tempo em que se vale de todos os meios – alguns mais que questionáveis – para manter Wakanda unida, T’Challa já não sabe se é o homem certo para suportar o peso da coroa e ser o símbolo de um país, e sente o remorso de ter deixado sua irmã para morrer pelas mãos dos asseclas de Thanos.
São essas e outras questões que Ta-Nehisi Coates explora em “Uma nação sob nossos pés”, utilizando sua experiência literária para montar um interessante mosaico sobre poder, política, tradições, feminismo, nacionalismo, lealdade e o sentimento de pertencimento – no caso, a um país no qual muitos já não se veem tão representados. A própria Wakanda, por sua vez, torna-se um personagem à parte, com o escritor americano apresentando um panorama da diversidade de seu povo, costumes e suas histórias e tradições ancestrais.
Para quem está ansioso pelo filme do Pantera Negra, os encadernados servem para matar a ansiedade ou apresentar o personagem aos neófitos. Mas também é uma ótima opção para quem gosta de boas histórias, independente do formato em que são contadas.
Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.