Lendo Amanda Palmer e pensando em Scorsese e os filmes da Marvel

Por Júlio Black

06/11/2019 às 07h00 - Atualizada 06/11/2019 às 07h05

Oi, gente.

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Terminei semana passada a leitura “A arte de pedir”, livro em que Amanda Palmer conta um pouco da sua vida. Basicamente, os perrengues que encarou para ser reconhecida como artista, desde os tempos como estátua viva, passando pelo Dresden Dolls, a carreira solo catapultada pelo financiamento coletivo (crowdfunding), o espírito eternamente colaborativo (ela convida artistas voluntários para seus shows). Pois houve, como ela conta no (ótimo) livro, pessoas que não entenderam o espírito da coisa e meteram o pau no que ela fazia: diziam que estaria mendigando na internet, enganando os fãs, explorando artistas, que ser estátua viva era vagabundagem. Que ela não fazia arte, que deveria arrumar um emprego (!).

E tudo o que ela queria era compartilhar sua arte, estar em comunhão com o público, outros artistas, amar, ser amada, compartilhar amor, sentimentos mil, essas coisas. Lances que, aliás, fizeram com que eu repensasse mais uma vez como analisamos o trabalho alheio. É muito fácil, aqui na frente do computador, fechado no meu mundinho, desvalorizar o trabalho alheio. Ok, muitas vezes há discos ruins, peças de teatro decepcionantes, exposições pavorosas, livros medíocres, mas do outro lado há (exceto os arrogantes, os realmente medíocres) um artista que acredita no que faz, que deseja compartilhar seus sentimentos, visão de mundo, memórias. Seres humanos dos quais não conhecemos as histórias ou os contextos em que criaram suas obras. Refletir se não estou chio de conceitos pré-estabelecidos antes de sair criticando faria muito bem.

Pois o livro da Amanda Palmer me lembrou a polêmica que tem rolado nas últimas semanas a respeito dos filmes de super-heróis em geral – e os da Marvel em particular. Tudo começou com Martin Scorsese comparando os longas do MCU (Universo Cinematográfico Marvel) com parques temáticos em uma entrevista para a revista “Empire”, que a princípio seria para promover seu mais recente filme, “O irlandês”, que será lançado no final do mês pela Netflix. E aí veio uma galera no bonde: Francis Ford Coppola chegou a usar o termo “desprezíveis”, Ken Loach também criticou, Fernando Meirelles idem. Até a Jennifer Aniston pegou lá sua pedrinha para tacar, mesmo sendo tão relevante para a história do cinema quanto o milk shake bebido pela Mia Wallace em “Pulp Fiction”. Ok, é o direito dela, mas também é nosso direito direito dizer “tá bom, senta lá, Cláudia”.

Entre outras declarações, Scorsese comparou as produções com parques temáticos, afirmou que tentou (mas não conseguiu) assistir aos filmes com super-heróis; enfim, que não “seria cinema”, pelo menos aquele que busca passar experiências emocionais e psicológicas. Disse ainda que as salas de cinema precisam se impor frente à avalanche de blockbusters; depois, aliviou o discurso ao colocar essas produções como “outra forma de arte” – até por serem trabalhos difíceis de realizar -, mas que não estão alinhadas à sua visão sobre o que é cinema. Mais recentemente, em um editorial para o “New York Times”, ele voltou a tratar do assunto, colocando como principal ponto a preocupação com o pouco espaço para filmes originais que não são franquias, blockbusters e afins – o que tem provocado a migração de muitos realizadores para serviços de streaming como a Netflix.

Então. Quem somos nós para querer meter o pau no Scorsese e Coppola, dois dos maiores cineastas da história, integrantes da geração que revolucionou a sétima arte nos anos 70, diretores de “Taxi driver” e “O poderoso chefão”. Não sou besta ou ignorante, pelo menos quanto a isso. Porém, também podemos colocar nossa colher nesse caldeirão.

Houve um tempo, vale lembrar, que cinema sequer era visto como arte. Quando os irmãos Lumière fizeram a primeira exibição de cinema, em 1895, era só a filmagem de um trem chegando a uma estação. Todo o potencial da futura sétima arte foi se desenvolvendo aos poucos, com a fotografia, roteiro, narrativa, planos de filmagem, efeitos especiais, a chegada do som, da cor, a proliferação de gêneros. Por isso, o cinema, assim como o teatro e a música, pode ser visto como diversão também, escapismo, e obviamente uma expressão artística capaz de contar grandes histórias.

Como costumo dizer para os amigos, colegas de trabalho, A Leitora Mais Crítica da Coluna, o importante é saber se o filme cumpre o que propõe. E aí não importa se é “Homem-Formiga”, “De volta para o futuro”, “Rashomon”, “O Trapalhão na Guerra dos Planetas”, “Touro indomável”, “A fraternidade é vermelha”, “Vingadores: Ultimato”, “Tão longe, tão perto”, “Mulher-Maravilha”, “Sexta-feira 13”: o que vale é se o público saiu satisfeito, feliz, emocionado, triste, reflexivo, se riu, chorou, ficou revoltado. Se adicionou algo de novo à sua vida, beleza, mas se for apenas escapismo também valeu.

Filmes de super-heróis, vale lembrar, não são necessariamente a mesma história, eles podem absorver outros gêneros. A trilogia do Christopher Nolan com o Batman é um exemplo; na Marvel, produções como “Capitão América: O Soldado Invernal” e “Pantera Negra” fogem do estereótipo de mero blockbuster. São produções, ainda, capazes de dar emprego a milhares de pessoas (basta ficar na sala de projeção para ler os créditos), contratar diretores e atores e atrizes de primeira linha, muitos vencedores do Oscar, reerguer a carreira de alguns – pergunte ao Robert Downey Jr. o quanto ele é grato à Marvel. Cineastas e artistas só conseguiram tocar projetos “menores” graças ao sucesso nos filmes da Marvel/DC. E desenvolver tecnologias de computação gráfica, efeitos especiais, inclusive as que permitiram ao próprio Martin Scorsese criar o visual de “A invenção de Hugo Cabret”.

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No caso do MCU, podemos defender a criação da maior narrativa da história do cinema. Duvido que alguém pensasse que seria assim lá em 2008, mas aquele “Eu estou aqui para conversar sobre a Iniciativa Vingadores” do Nick Fury criou uma saga com 23 filmes até agora, todos interligados de alguma forma para contar uma gigantesca odisseia. É incrível, sim, imaginar que foi possível levar o conceito de universo interligado criado por Stan Lee, Jack Kirby e cia. há mais de 50 anos para a tela grande. Criou-se uma ligação tão forte entre personagens e público que basta lembrar todas as lágrimas do público em “Ultimato”.

Havia ali uma empatia com personagens que, até mesmo nas HQs, nunca tiveram toda essa comoção. Quase ninguém se preocupava com o Homem de Ferro, e lá estava todo mundo arrasado com a morte de Tony Stark. Quando uma série de filmes é capaz de mudar a cultura pop (adultos que nunca leram HQs com camisas do Capitão América, gerações diversas conversando sobre Thanos), é porque ela tem valor, sim, como cinema. As pessoas não só compraram (a Disney comemora, claro) como abraçaram aquele universo, e isso é o sonho de qualquer pessoa que trabalhe com arte e entretenimento.

Ah, sim, e o mais importante: podem até dizer que o público é manipulado, consome qualquer porcaria, que marketing é tudo, mas as pessoas vão ao cinema, geralmente, para assistir aos filmes que elas querem – ainda mais que o preço do combo ingresso+pipoca é para poucos. Há exceções, claro, como os desavisados que escolhem qualquer coisa que está em cartaz, mas a Marvel criou um público que se acostumou a acompanhar uma história contada de uma forma que jamais foi tentada. E o mérito é todo deles.

Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

Júlio Black

Júlio Black

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