Como sobreviver a zumbis, ao coronavírus e à solidão

Por Júlio Black

03/06/2020 às 07h18 - Atualizada 02/06/2020 às 15h51

Oi, gente.

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Há muito tempo que não me preocupo em estabelecer metas de ano novo, pois é o tipo de coisa que termina em ansiedade, decepção, “fracassei de novo”, essas coisas. Até porque comerei mais chocolate do que deveria. Em 2019, por exemplo, o único desafio que estabeleci foi o de ler 50 livros antes de 31 de dezembro chegar, e faltou pouco: foram 45 livros em 365 dias, e decidi que em 2020 eu bateria a meta.

Acredito que vou conseguir, pois já foram 28 livros em cinco meses. Muito disso se deve, infelizmente, à pandemia do coronavírus que temos enfrentado. Mas não é porque o isolamento e distanciamento social têm me proporcionado mais tempo, pois temos home office, filho para cuidar, casa para limpar. A literatura é uma opção mais interessante para esquecermos as desgraças do mundo, pois o tempo que temos para relaxar costuma vir apenas depois das 22h, aí estamos cansados demais e odeio parar filmes pela metade. Livros, pelo menos, são feitos para ler em partes.

Foi em meio a essa maratona literária que tive a oportunidade de ler “A noite devorou o mundo”, de Pit Agarmen (pseudônimo do francês Martin Page, autor de “Como me tornei estúpido”), uma história de apocalipse zumbi que tem tudo a ver com nosso tempo, acredite. O livro já foi adaptado para o cinema em 2018 e chegou a ser exibido em JF City ano passado, mas recomendo ler o original antes de se aventurar pelo audiovisual.

O protagonista é Antoine, um escritor medíocre – mas no sentido de mediano – que foi convidado para uma festa em que não conhece ninguém, exceto a dona do apartamento. Depois de fracassar nas tentativas de socialização, ele pega uma garrafa de uísque, se esconde num quarto, toma um porre e apaga. Quando acorda, na manhã seguinte, descobre que o apê virou cenário de uma carnificina e que Paris – onde se passa a história – e o mundo foram tomados por zumbis que matam tudo o que veem pela frente – ou transformam as vítimas em outros zumbis.

Ao contrário de outras obras do gênero, em que a galera tentar fugir, encontrar outros humanos que escaparam da morte, nosso protagonista cai na real logo no ato da matrícula: “eu que não saio daqui, não chego vivo na esquina”, pois é o que observa da sacada com pessoas morrendo feito moscas ao tentarem enfrentar ou fugir dos mortos-vivos. Ir até a rua é sinônimo de morte.

Não demora muito para perder o pouco que resta de contato com o mundo exterior. Emissoras de rádio e TV saem do ar, a internet e telefonia deixam de funcionar, o fornecimento de energia elétrica também, a água não sai mais das torneiras. Ele não sabe se os pais estão vivos, os amigos, a ex-namorada. É preciso viver com a quase certeza de ser o último ser humano vivo, organizar uma nova existência com o que tem à mão.

Antoine busca então se organizar para impedir o ataque dos zumbis. Bloqueia a entrada do prédio, passa pelos outros apartamentos para ver se estão vazios e se encontra mantimentos, roupas, faz faxina em seu novo lar, decide manter uma rotina para não enlouquecer – o que não é nada fácil com o decorrer dos dias, semanas e meses em que ele precisa se virar sozinho.

Com pouco mais de 120 páginas, a história mostra como esse isolamento afeta as ações e os sentimentos de Antoine ao ter de encarar a solidão quase total – os zumbis estão sempre presentes -, a provável morte das pessoas amadas. Há desespero, alegria, apatia, indiferença, raiva, inúmeros sentimentos em conflito durante toda a trama.

“A noite devorou o mundo” é um livro sobre a solidão em que o apocalipse zumbi é um detalhe, e ideal para refletirmos sobre a situação que temos enfrentado por quase três meses. A obra tem paralelos com a nossa nova e temporária realidade, pelo menos para quem pode ficar em casa em tempo integral. Mas, ao contrário de Antoine, podemos acreditar que num futuro relativamente próximo, daqui a alguns meses, a vida retornará à normalidade possível.

Claro que nem todos têm à disposição os mesmos confortos, mas pelo menos a energia elétrica funciona, temos acesso à internet, TV por assinatura ou aberta, podemos ouvir música, ligar para amigos e parentes e namorados e namoradas e esposas e esposos. Não temos zumbis à nossa porta querendo comer nossas tripas, só precisamos ter em mente que ficar em casa, evitar aglomerações, é um sacrifício temporário, porém essencial.

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Sozinhos ou acompanhados, agora é hora de ficar em casa, sair apenas quando necessário. Vamos seguir com o trabalho, a limpeza, cozinhando, curtindo séries, filmes, ouvindo nossa playlist “…E obrigado pelos peixes”, jogando videogame, conversando com os amigos e parentes pelos aplicativos, por telefone. E lendo livros ótimos como “A noite devorou o mundo”, que tanto tem a ver com o mundo de 2020.

Exceto os zumbis, claro.

Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

Júlio Black

Júlio Black

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