Sobre pais e filhos, medos, morte, luto – e como “Kidding” vai te fazer chorar

Por Júlio Black

03/04/2019 às 07h10 - Atualizada 02/04/2019 às 12h39

Oi, gente.

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Há exatos quatro anos esta coluna estreava aqui na Tribuna, e desde então tenho o privilégio de compartilhar com meus ah migos e ah migas resenhas, recomendações, declarações de amor eterno e críticas impiedosas sobre quadrinhos, filmes, séries, música, digressões aleatórias sobre a cultura pop, o mundo nerd. Apesar da dedicação sincera a cada matéria, nota, fotolegenda, sempre temos um pouco mais de carinho por nossos “filhos”. E a “…Obrigado pelos peixes” é a criança que tem crescido comigo em quase cinco anos na Tribuna, assim como era com a coluna “Satélite” no “Diário do Vale”, lá em Volta Redonda.

Pois é sobre filhos que vamos tratar esta semana. Meus improváveis leitores devem ter percebido que desde o nascimento de Antônio, O Primeiro de Seu Nome, há quase três anos, passamos a ver tudo com outros olhos. Quando nos tornamos pais, queremos que nossos herdeiros possam crescer com saúde, educação, sendo amados, valorizando e respeitando as diferenças, que aprendam a ter empatia, para que se tornem seres humanos muito melhores que seus pais, avós, tios e tias.

É o que tentaremos fazer no futuro quando Antônio tiver idade para conversarmos sobre coisas sérias. É o que tento fazer, hoje, por meio da coluna, quando sinto que tenho algo importante a dizer a ele, mas, por conta da sua idade, não teria sequer como começar. Quem sabe, no futuro, ele dedique alguns minutos ao trabalho do pai e possa tirar algo de bom para a pessoa que vier a ser. E descubra o quanto sua existência mudou tudo na minha vida e na vida d’A Leitora Mais Crítica da Coluna.

No meio desse “tudo”, duas coisas mudaram radicalmente e estão interligadas de forma irreversível: o medo e a forma de encarar a morte. Porque todo medo que eu tinha anteriormente, fosse de morrer, de altura, ser assaltado, preso e condenado, ficar sem a mulher que amo, nenhum deles se compara ao medo de perder meu filho. É algo superado apenas pelo amor que sinto por ele. Hoje eu continuo tendo medo de altura, de morrer, de perder A Leitora Mais Crítica da Coluna, mas a ideia de que posso perder Antônio, não importa a maneira, causa uma espécie de pânico impossível de descrever. E que só aumenta com o tempo: quando o vejo dormindo; quando ele corre para nossa cama, de manhã, falando “é dia!”; quando fala sem parar e entendo quase nada; quando me abraça ao carregá-lo no colo; quando pede para ser carregado de cabeça para baixo na hora de tomar banho; quando ele falou pela primeira vez, semana passada, “você é meu amigo”.

Tá difícil de escrever, mas vamos lá.

Ser pai, carregar todo esse amor, todo esse medo, influenciam na forma como passei a absorver o noticiário. Abominações como o massacre de Suzano, pessoas (inclusive pais) que matam crianças por pura maldade ou falta de amor, compaixão, sei lá; tragédias como acidentes, deslizamentos, desabamentos, em que outras crianças de meses ou pouco anos de vida estão entre as vítimas, têm hoje um efeito multiplicado ao infinito, porque a paternidade nos deixa assim. A empatia se torna mais forte, pois poderíamos ser nós ali, destroçados até os ossos. Dá vontade de chorar só de pensar.

O mesmo se dá com a arte, seja ela ficção ou baseada em fatos reais. Foi assim, por exemplo, com “It: A coisa”, quando o Pennywise arrasta aquele menininho para o bueiro, ou em “O primeiro homem”, quando vemos o Neil Armstrong sofrendo em silêncio pela doença da filhinha e depois, no seu funeral. Passamos a sentir uma identificação emocional com situações que não conseguimos explicar, porque mesmo a dor “fingida” pode ser tão profunda quanto a dor que sentimos – ou podemos sentir.

E olha, poucas coisas neste mundo serão tão devastadoras para mães e pais quanto “Kidding”, a série do canal norte-americano Showtime estrelada por Jim Carrey. Ele interpreta Jeff Pickles, astro há décadas de uma série infantil que procura levar sabedoria e bons exemplos para a criançada, explicando o valor da bondade, da amizade, todas aquelas coisas que desejamos para nossos filhos. Todo mundo ama o Sr. Pickles, inclusive criminosos no corredor da morte, e não falta quem diga que ele foi sua salvação em um momento de desespero.

Mas o Sr. Pickles também é humano, se desespera, e carrega a tragédia de ter perdido um de seus filhos gêmeos num acidente de carro e não saber como lidar com o luto. Entre as consequências, ele não consegue se relacionar com a (ex) esposa, com o filho que sobreviveu; não tem força para dizer “não” ao pai, produtor do seu programa e interessado em fazer o show continuar; não sabe lidar com tanta raiva e mágoa acumuladas (“o vulcão do Monte Santa Helena prestes a explodir”, como diz em certo momento). Mesmo à beira do colapso, buscando expressar suas emoções por meio dos fantoches de seu programa, Jeff mantém uma visão otimista do mundo e acredita na existência de um “bem maior” por trás de tudo, mesmo quando todos a sua volta não têm dúvidas de que ele perdeu o rumo.

“Kidding” pode ser definida como uma série sobre a morte, o luto, quem perdeu o rumo, não sabe como lidar com esse luto. Sobre um pai que carrega a dor dilacerante de perder um filho, que não sabe lidar com o fato de que a vida continua, que há outros que precisam dele, que carrega o fardo de ser o cara bonzinho que diz o que todos precisam ouvir, capaz de tirar da lama até a alma mais perdida, mesmo com um coração que não para de sangrar e sem saber como lidar com seus próprios dramas.

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Você vai chorar assistindo a “Kidding”? Com certeza, e não vai ser apenas uma vez, apesar dos momentos cômicos ou surpreendentes da primeira temporada. Os dez episódios têm uma leveza, uma delicadeza, que as lágrimas vêm naturalmente, como em “Bye, mom” e “The cookie”, e fazem com que a dor de Jeff Pickles também seja a sua. Afinal, nada deve ser mais doloroso que a morte de um filho, até mesmo numa obra de ficção.

O que nos resta, então? Aprender a lidar com esse medo e aproveitar todos os momentos ao lado de nossos filhos; amá-los, admirá-los, ter a sorte de vê-los crescer, ser felizes; que o nosso máximo tenha sido, pelo menos, o mínimo para ajudarmos a criar seres humanos melhores. Que nós, tão imperfeitos em tudo, tenhamos aprendido alguma coisa com eles também.

E quem sabe, daqui a 15 ou 20 anos, ter a sorte de continuar ouvindo “pai, você é meu amigo”.

Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

 

Júlio Black

Júlio Black

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