Morte e vida Severina
A primeira peça de teatro adulta a que assisti na vida foi uma adaptação de “Morte e vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, com os poemas musicados por Chicão – sempre ele – Buarque. Eu devia ter uns 10 anos, e a montagem foi encenada por um grupo da minha tão querida Três Rios. Gostei tanto que fui duas vezes: a primeira, levada pela minha mãe, e a segunda, aplicando uma amiguinha, a Guta, minha então fiel escudeira.
Não tinha lua, eu não tinha idade para beber conhaque, mas o drama daquele Severino retirante, só um entre tantos outros igualmente desafortunados, me pôs, ainda criança, como Drummond: “comovida feito o diabo”. Nunca me saiu da cabeça aquela angústia louca em querer chegar ao litoral, ao Recife, aquele lugar onde tudo era promessa, tudo podia ser menos difícil e doído do que no sertão da Paraíba, onde se morria “de seca, de fome, e de velhice antes dos trinta”. Também desde então carrego outra herança da obra de João Cabral, um questionamento tão pungente quanto perene: qual é a parte que me cabe neste latifúndio caótico, monopolizado por poucos, e malcuidado chamado vida?
Para além do meu umbigo de Júlia, me sufoca e aterroriza ver a insignificância da parte que cabe, neste latifúndio, a nós, mulheres, tão Severinas e vitimadas por nosso próprio sertão particular. Nesta terra tão infértil, morre-se tanto antes dos trinta quanto na Paraíba de Severino. De morte espancada, pela infração imperdoável de ser bonita demais, emboscada por iguais, fato tão absurdo quanto corriqueiro – basta ver os jornais das últimas semanas. Também se morre de fome, sim. Pela privação de comida, uma automutilação em busca de não ouvir a alcunha que assombra a tantas de nós: “GORDA”. Variações do tema tiram, na mesma medida, a vida de meninas e mulheres que, cegas por padrões de beleza irracionais, miram-se no espelho e veem somente a inscrição “feia”.
Algumas autopsias revelam também um altíssimo índice de óbitos por causas como desgosto, repulsa e medo, todas originadas por um disparate tido como senso comum, de que o corpo feminino está – ou deveria estar – sempre à disposição, sem que a mulher possa reclamar qualquer posse sobre o tal, como o pobre Severino de Maria, que nada tinha na vida. A cada dia, morremos um pouco, coletivamente, com as obscenidades gritadas na rua. Com qualquer frase que comece com “lugar de mulher”. Com todos os “estava pedindo” que se referem ao nosso vestuário, nossa aparência, nosso comportamento ou qualquer atitude que “não é coisa de mulher direita”. A cada gestante que morre na mesa de um açougue onde se faz abortos, e é desovada sabe-se lá onde, sem arcada dentária, para que nem se questione um “quem?”. Mortes morridas, mortes matadas. Mortes e vidas severinas.
Mas onde é que fica este litoral tão melhor que a aridez que nos corrói diariamente ? Onde ele está que caminhamos, caminhamos e só se vê chão rachado e estéril pela frente? Se a vida realmente imita a arte, tenho um grande medo de João Cabral de Melo Neto ter sido profético, e a nós, mulheres, caber neste latifúndio exatamente o mesmo que foi reservado ao Severino retirante: “Não é cova grande, é cova medida/É a terra que querias ver dividida”.