A canção do encorajamento de Manoel Bernardino

Ele fugiu da fome no Nordeste, fugiu da violência que levou um filho seu e fugiu do analfabetismo que lhe impôs limites: Aos 91, Manoel concluiu os estudos e lançou um livro


Por Mauro Morais

14/07/2019 às 07h00

Manoel completou o ensino médio, lançou um livro e se inscreveu para fazer o Enem este ano. Não pensa em parar de estudar, nem de escrever, nem de compor. (Foto: Fernando Priamo)

Estava crescido quando foi tirar a própria certidão de nascimento. O documento era a chave para o projeto de dias de fartura. O atendente do cartório pediu a Manoel Bernardino do Nascimento, já adolescente, que assinasse um papel. O jovem fez como desenhasse umas bolinhas no papel. O homem, então, perguntou-lhe o grau de cultura. Manoel não entendeu. “O tempo que você estuda”, explicou o homem. Próximo de completar 18, ele respondeu que só havia passado quatro meses numa carteira de escola. O homem determinou à pessoa que digitava: “Coloque analfabeto!”. “Cheguei em casa e falei: Olha meu pai, que letra bonita! Está escrito: analfabeto!”, narra Manoel, às gargalhadas.

Aos 85, entrou na alfabetização. Era um retorno feito novidade. Na última vez que havia pisado numa sala de aula, Manoel tinha 14 anos e passou apenas os quatro meses necessários para aprender a assinar o nome. “‘Dona Rita, eu tenho uma vontade de aprender a escrever’, eu disse. E ela me falou: ‘Eu te ensino, rapaz!’. Comprei um caderninho e passei a fazer bolinha, bolinha. Depois de uns três meses eu falei: ‘Dona Rita, estou cansado de fazer essas bolinhas’. Ela disse para eu fazer pela última vez. Eu estava treinado, fazia certinho. Ela veio e falou: ‘Está vendo essa bolinha? Bota uma perninha nessa primeira, faz um chapeuzinho ali. Depois ela disse: ‘Você escreveu seu nome!’. Eu falei: ‘Meu nome é isso aí?!’. Fiquei feliz!”, emociona-se. “Hoje escrevo com essas bolinhas”, ri ele.

PUBLICIDADE

Aos 91 anos, Manoel veste uma camisa preta que, nas costas, em tinta branca, carrega seu nome e a inscrição “Formandos 2019”. Encerrando um ciclo, demarcando a conclusão do ensino médio, Manoel viu seus curtos poemas transformarem-se em livro. “Em busca dos sonhos perdidos” reúne 103 escritos do homem que ganhou asas quando descobriu o significado dos rastros de uma caneta. “Eu me inscrevi no Enem. Penso em fazer Letras. Tenho que seguir os estudos, não é mesmo?! O que minha mente determinar, vou fazer. Minha carreira se completa se eu ficar como compositor e autor de livros.”

Nas mãos, o livro “Em busco dos sonhos perdidos”, que concluiu a passagem de Manoel pelas salas do Cesu, no Teixeiras. (Foto: Fernando Priamo)

Vou-me embora pra Pasárgada

No corpo e na história Manoel carrega a invasão e a diáspora. Sua família paterna descende dos franceses que, no século XVI desembarcaram no Nordeste iniciando um série de ocupações pela região litorânea. Já sua família materna descende de indígenas do Rio Grande do Norte, que tiveram seus grupos dispersos para a construção do Centro de Lançamento da Barreira do Inferno, base da Força Aérea Brasileira para o lançamentos de foguetes. Manoel levanta a camisa e mostra a ausência de pelos no torso, nas axilas e nos braços. Tem mais sangue indígena correndo nas veias do que do homem branco. Um dos cinco filhos de um casal já marcado pela miscigenação, nasceu numa fazenda de nome Santa Laura, na Zona Rural da pequena Guarabira, a cerca de cem quilômetros de João Pessoa, na Paraíba. A irmã mais velha, que carregava Manoel no colo, morreu aos 13 anos. E a família manteve-se na luta contra a escassez. “Sabe o que é sustentar quatro filhos, mais ele e a mulher ganhando R$ 1 por dia? Imagine! Meu pai fazia serão mas não recebia porque a fazenda era de outra pessoa. Ele derrubava madeira e puxava no burro. Depois deram uma chance para ele no engenho”, conta. No terreno em volta de casa, a família passou a plantar e colher. Até a mãe pegava na enxada. “Lá eu levava uma vida de miserável. Eu não tinha dinheiro, mas tinha uma sanfona que gostava de tocar”, recorda-se Manoel, que na hora de ir embora vendeu o instrumento, pela metade do preço que gastou para comprá-lo e para subtoná-lo. Aos 18, embarcou no Porto de Cabedelo, na capital paraibana. Era 4 de setembro. Parou em Recife e Maceió e depois seguiu direto. Sete dias depois desembarcou no Rio de Janeiro. De chegada empregou-se como servente de pedreiro, ofício que desconhecia por completo, mas, que pouco a pouco foi aprendendo, até assumir a função. Em 1954, Manoel partiu para São Paulo, para atuar na construção de um condomínio popular. A estadia durou pouco e ele retornou ao Rio de Janeiro. “Virei cobra criada em tudo. Tinha lugar, quando não tinha um monte de vigas, eu deixava pronto em um dia.”

Aos 14 anos, Manoel passou apenas quatro meses na escola, o bastante para aprender a escrever o nome. Seu sonho, portanto, era formar frases, escrever poemas e canções, como faz hoje. (Foto: Fernando Priamo)

Morte e vida severina

Após andanças e trabalhos no interior do estado, nos anos 1960 Manoel encontrou um amor em Saquarema. Sônia Maria era estudante e tinha metade de seus 36 anos. Desiludido, pouco tempo antes de encontrá-la ele se desfez da relação com uma mulher que, na mesma noite do noivado dormiu num motel com o prefeito. “Fiquei noivo num dia e no outro desmanchei”, conta, aos risos, o homem que era amigo da mãe da jovem Sônia. Na cidade conhecida por suas boas ondas, o casal teve cinco filhos, que hoje se multiplicaram em 15 netos e cinco bisnetos. Da mesma cidade, no entanto, Manoel partiu no dia 7 de abril de 2007, assistido pelo Programa de Proteção às Vítimas e às Testemunhas Ameaçadas. “A família da gente às vezes pega amizade com pessoas erradas e entra para o caminho à esquerda. Meu filho era usuário de drogas e foi pego com um negócio. A polícia que pegou era milícia e pediu R$ 10 mil a ele, que não tinha. Ele conseguiu R$ 1 mil, e o chefe disse que ele, então, iria trabalhar para ele. Trabalhar que chama era vender as drogas que eles (os milicianos) tomavam das pessoas para fazer dinheiro. Eles pegam as pessoas e, com o tempo, matam. Foi o que aconteceu com meu filho. Matou ele de frente a mim, a três metros de distância. Meu filho estava sentado cortando arame para fazer viga e eles chegaram, mostraram a arma, meu filho olhou, e eles deram um tiro do lado e outro na cabeça. Depois pegaram a arma e apontaram para o meu lado. Eu saí dizendo ‘Ai meu Deus! Ai meu Deus’. Se eles me matassem também teriam que matar o vizinho que estava sentado do lado, onde estava o meu filho”, recorda-se, emocionado, Manoel, que passados dez anos no programa, optou por não regressar para a terra onde ainda hoje vive a maior parte da família e os bens que conquistou ao longo da caminhada. “Eu tinha uma casa com uma carpintaria com 12 máquinas, que fabricavam tudo. Eu tocava as obras e também tinha caminhões que carregavam tijolo, areia e a caçamba para fazer aterro.”

Nascido na Paraíba, Manoel formou família em Saquarema, no Rio de Janeiro, e radicou-se, há mais de dez anos, em Juiz de Fora. (Foto: Fernando Priamo)

Os ombros suportam o mundo

De exílio em exílio, Manoel precisou, em 2015, mais uma vez retirar-se. Dessa vez, no entanto, era a dor de uma nova ausência que o instigava a se movimentar. Doente, a esposa Sônia viveu seus últimos anos alheia às aflições, tomando grande parte das horas e da atenção de Manoel. Quando ela se foi, Sandra, que se tornou sua única companhia em casa, sugeriu ao pai que voltassem, os dois, a estudar. “Eu não sabia de nada, só assinar o nome”, falou o homem. Sandra foi para uma sala, e o pai, para outra, na Escola Municipal Oswaldo Veloso, no Bairro Santa Luzia, em Juiz de Fora. No início Manoel era alvo de algumas piadas. Pouco a pouco os amigos se acostumaram com aquela presença tão comprometida e esforçada. “Quando terminei o primeiro e o segundo anos, eu já tinha 36 poemas. Uma professora, então, me pediu para recitar um poema. E ela recitou: ‘Quem disse que amar é bom/ fala a verdade, não mente./ Dá um balanço no corpo/ e deixa o coração dormente’. Aquilo foi uma explosão de felicidade na minha mente”, conta. Sempre às voltas com papel e caneta, permanentemente inspirado, Manoel ganhou um concurso de poesia no Cesu (Centro de Ensino Supletivo Custodio Furtado de Souza), no Teixeiras, onde deu prosseguimento aos estudos e onde viu seu primeiro livro lançado. Hoje também tem 42 melodias registradas na internet e quase 40 sem registro. Um professor ensinou-lhe a tocar violão, mas os dedos, segundo Manoel, eram curtos demais para fazer as notas. Para trás ficou a angústia que muitas vezes viveu ao ter que pedir para que colegas escrevessem suas cartas no tempo em que morava no Rio de Janeiro e não tinha outra forma de se comunicar com a família na Paraíba. Um dos amigos da época, um mineiro que estudava engenharia e trabalhava como servente na mesma construtora, foi quem ensinou as primeiras noções de matemática a Manoel. “Ele sabia muita coisa e me ensinava todo dia um pouco”, lembra ele, que afiado nos números sentia falta de dominar as palavras. Hoje sente-se mais completo, diz, mais feliz, realizado e em paz. “Eu estava um dia escrevendo e disse: ‘Meu Deus, onde é que você está?!’. E senti aquela voz falando ao meu ouvido: ‘Eu estou naquilo que você faz!’ Foi tão gostoso quando escutei aquela voz. É sinal de que Ele está do meu lado, não é mesmo?!”.

Formando 2019: Manoel Bernardino do Nascimento! (Foto: Fernando Priamo)

O conteúdo continua após o anúncio

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.