A batera do Miltinho

Milton Ramos de Brito conta história superlativa, cheia de tons


Por Mauro Morais

04/06/2017 às 07h00- Atualizada 11/08/2017 às 18h29

 

"Aquele 'que rufem os tambores!', fui eu quem sugeriu" (Foto: Fernando Priamo)
“Aquele ‘que rufem os tambores!’, fui eu quem sugeriu” (Foto: Fernando Priamo)

Era um vaivém na Praça da Estação da década de 1940 com o movimento das estradas de ferro Leopoldina e Central do Brasil. Cercado por hotéis, o lugar contava com um campo onde eram erguidas as tendas dos circos mambembes que chegavam à cidade e também com o Regina Hotel, onde se hospedavam os artistas que nas estações desembarcavam. Era um vaivém o momento que o pequeno Milton Ramos de Brito fazia sobre o pandeiro que acompanhava a fantasia da irmã Regina. Aos 11, o menino brincava quando chegou à sua frente o cantor e compositor Dorival Caymmi, hóspede do hotel que se apresentaria ali perto, no Cine Glória. “Ele achou estranho me ver tocando e me convidou para a apresentação. Fui e fiz duas músicas com ele. Era 1948. Mas se você pedir testemunhas, não tenho. Morreram todas”, ri, brincalhão, o homem que no vaivém das baquetas tornou-se Miltinho Batera.

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Próximo de completar oito décadas de vida, ele reconhece a música como parte de si. Característica de si. “Esse negócio de tocar já vem com a pessoa. Não se ensina. Qualquer instrumento. Música é arte e se você não tiver, não adianta. Tem que ter andamento, ritmo, célula, uma série de fatores”, defende ele, cuja genética já lhe indicava o caminho. “Meu pai tocava guitarra e violão na PRB-3, no prédio da antiga Biblioteca Municipal, que ficava no centro do Parque Halfeld. No andar de baixo do prédio, estava a rádio, com discos de acetato que quebravam à toa”, recorda, referindo-se ao patriarca português, de sotaque nunca perdido.

“Meu pai tinha o quarto ou quinto ano primário em Portugal, mas tinha uma caligrafia e um vocabulário como se fosse um cara da Academia Brasileira de Letras. Era muito educado e fino. Ele veio para o Brasil, parou com um irmão em São Paulo e foi para São Lourenço, onde um tio deles tinha negócios. Ele acabou sendo gerente do Hotel Brasil na época do Getúlio Vargas. Tenho uma foto dele, na escada, com o Getúlio. Lá ele conheceu minha mãe. Nasci lá e vim com oito meses”, pontua ele, para logo questionar, em tom de galhofa: “Quer saber da vida do meu pai e da minha mãe ou da minha?”.

Ritmista

Dois anos depois do encontro com Caymmi, Milton foi convidado, mais uma vez, ao palco. Desta vez, porém, era para não mais sair. “Minha irmã cantava na Orquestra do J. Guedes. Eu a acompanhava nos bailes, para que não fosse sozinha. Numa domingueira no Círculo Militar, que funcionava na Casa D’Itália, o J. Guedes perguntou ao maestro Tim, que era o baterista, quem ele colocava na orquestra como ritmista. ‘Ué, põe o Milton’. O J. Guedes perguntou se eu tocava. E ele respondeu: ‘Bateria também’. Até eu assustei”, conta, aos risos. Convite aceito. Mas faltavam-lhe as roupas (ou smoking ou summer). “Eu só tinha uma calça branca, que era o uniforme do colégio, e minha tia me arrumou um paletó azul. Fui de summer ao contrário”, ri ele.

“Fui autodidata, no peito. Já conhecia os arranjos por ficar ouvindo, então fui tocando.” Logo o jovem já integrava a Orquestra de Waldyr Barros, no Programa do José de Barros, na Rádio Industrial. E também o prestigiado conjunto de um músico internacional. “Nesse tempo veio um músico da Itália chamado Giordano Monass, que tocava acordeão, sax e clarinete. Ele foi músico do Scalla, de Milão. Chegou aqui enganado pelo tio, que morava perto de Retiro e disse que tinha uma fazenda com muitas rochas para ele fazer um estudo. Ele era geólogo e chegou com mulher e filhos. Veio para o Centro e começou a procurar lugar para tocar. Na orquestra, faltava sax, e calhou de ele ir tocar lá. E calhou, também, de ele morar no mesmo prédio que eu. Ficamos muito amigos. Passou um tempo, e ele já não aguentava a orquestra, então resolveu fazer um conjunto e me chamou”, recorda-se o homem que passou a estudar teoria, ler partituras, inclusive tendo Giordano como um de seus professores. Não lhe faltava trabalho. O ritmista Milton tocava em bailes pela região toda. “Numa sexta-feira, com baile marcado para domingo, o Giordano me chamou para tocar bateria.”

Baterista

Antes de integrar o Quinteto Onze e Meia, do “Programa do Jô”, Miltinho Batera formou o conjunto MeiaNoite. O homem das altas horas havia acabado de retornar de São Paulo e novamente apostava em Juiz de Fora. “Eu tocava no Dreams, nessa época, e conheci a Elizabete, que trabalhava num banco na Rua Halfeld”, conta, fazendo referência à mulher com quem está casado há 51 anos e com quem teve os filhos Ludmilla e Leonardo, que lhes deram três netos. Ao lado da esposa, o músico estabeleceu-se entre Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, construindo uma carreira superlativa, de momentos altos como a entrada no elenco do espetáculo “Hair”, com direção de Ademar Guerra, numa de suas mais emblemáticas montagens. “Fiz dois vestibulares, para comunicação na Universidade Federal Fluminense e para direito na Faculdades Metropolitanas Unidas, em São Paulo. Nem comecei. Porque quando ia para a Fluminense, entrei no espetáculo ‘Hair’, com o elenco mais famoso, com Nuno Leal Maia, Armando Bógus, Sônia Braga, Ney Latorraca”, lembra ele, que acompanhou, dentre outros, Rick Wakeman, Ray Conniff, George Benson, Johnny Rivers e duas vezes o cubano Buena Vista Social Club, além do fenômeno dos anos 1960 Ed Lincoln. “Ele gostava tanto de mim que ia, com o carro dele, na minha casa me buscar com a minha bateria. Depois me levava.”

O músico que, com sua Orquestra Aquarela, tocou na inauguração da TV Industrial em Juiz de Fora, foi contratado pelo SBT de Sílvio Santos durante 30 anos e por quase duas décadas pela TV Globo. Uma de suas maiores missões diante das câmeras foi acompanhar o apresentador Jô Soares em seus talk shows. “Começou como quarteto, virou quinteto, foi a sexteto e voltou a quarteto. No começo todo mundo era muito amigo”, pontua Miltinho, que deixou a TV junto de Jô, que se despediu do programa no dia 16 de dezembro de 2016.

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Referência

“Quando acabou o programa”, conta Miltinho, “vim para Juiz de Fora, relaxei e pensei: O que vou fazer? Vender pipoca, bolinho de bacalhau, hambúrguer frito? Decidi tocar, mas os músicos aqui já estão comprometidos. De repente, encontrei um rapaz do Sul de Minas, que toca contrabaixo. Falei para ensaiarmos, e ele topou”, conta, enumerando a entrada de outros músicos na formação, cuja a estreia foi feita na última sexta, tocando bossa-nova, samba, salsa, chá-chá-chá, e standard americano. De professor na Universidade Livre de Música, em São Paulo, onde lecionou por cerca de uma década, a apresentador de programa de rádio, chamado “Sons maravilhosos”, em sua São Lourenço natal, Miltinho fez muito sem com isso deixar as baquetas de lado. “Muitas coisas que tem no programa do Silvio e teve no programa do Jô, fui eu quem introduziu. Levadas e aquele ‘que rufem os tambores!’, não existiam. Fui eu quem sugeriu”, gaba-se ele, que também não abandonou a cidade que o acolheu aos 8 meses de vida. “Quando voltamos para Juiz de Fora, nos acomodamos, e minha mulher resolveu comprar uma cachorrinha, que deu cria. Fora os que morreram, hoje ainda são 27. Como levar isso para São Paulo, num apartamento? Sou feliz aqui”, diz ele, que carrega no corpo algumas dores de uma batida de carro no Bom Pastor, há quase cinco anos, e os cabelos brancos cheios de história. “Vivenciei tudo. Não sou testemunha ocular, sou testemunha presente”, brinca. A jovialidade vem de onde?, pergunto. “Eu sou jovem? Não sei. Talvez seja genética e venha do meu pai, que morreu com 92 anos. Se eu morrer, é com 250. Não me venha com morte, não.”

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