Veja entrevista com Jane Di Castro, cantora e atriz que faz show hoje em JF

Com mais de meio século de carreira, Jane Di Castro comemora visibilidade de filme, participação em novela e conquistas de sua história, mas alerta para retrocessos sociais


Por Mauro Morais

17/08/2017 às 06h00- Atualizada 18/08/2017 às 15h56

“Louco é quem me diz que não é feliz”, canta Jane Di Castro numa das cenas de “A força do querer”, novelas das 21h escrita por Glória Perez. Na plateia da apresentação na qual a cantora e atriz interpreta “Balada do louco”, de Arnaldo Baptista e Rita Lee, está a personagem Elis Miranda, travesti vivida pelo ator Silvero Pereira, aprendiz de Jane Di Castro na trama. Metáfora para um momento de fortalecimento da personagem constantemente violentada na história, a música é exatamente o discurso que a transexual com 51 anos de carreira carrega no palco e na vida. Espaços que, por sinal, se confundem na trajetória de Jane Di Castro, artista que se projetou ao adotar o sobrenome. “As portas se abriram”, conta a artista em entrevista à Tribuna, por telefone.

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Jane Di Castro aprova o retrato da comunidade LGBT feito pela novela “A força do querer”, de Glória Perez: “Ela está contando muito bem, com muita dignidade, mostrando a realidade das transexuais e dos travestis” (Foto: Divulgação)

Incluída no setlist de “Divas da canção”, show que Jane Di Castro apresenta em Juiz de Fora nesta quinta-feira, às 20h, no Cine-Theatro Central, “Balada do louco” compõe um conjunto de reverências. “Homenageio as divas nacionais e internacionais, misturo muito. Canto Rita Lee, Marisa Monte, Edith Piaf. Abro o show com “I will survive”, da Glória Gaynor, o hino gay que canto em espanhol em homenagem à Célia Cruz, em ritmo de samba”, conta ela, uma das juradas do Miss Brasil Gay, no sábado, 19. Estrela de “Divinas divas”, filme de Leandra Leal que revisita o trabalho do grupo formado por Jane Di Castro, Rogéria, Valéria, Camille K., Fujika de Halliday, Eloína, Marquesa e Brigitte de Búzios, responsável por revolucionar a cena LGBT do Rio de Janeiro e do país com espetáculos históricos.

“Tenho méritos. Recebi críticas muito boas na minha carreira. Minha trajetória sempre foi muito digna e sem escândalos. Fui dirigida por pessoas importantes como Berta Loran, Bibi Ferreira e Ney Latorraca. Fui estrela de teatro de revista na Praça Tiradentes, um sonho de infância realizada. Me considero uma grande representante das trans do Brasil”, emociona-se a artista de cabelos loiros e cacheados que carrega na ponta da língua, para cantar em cena ou dizer nas ruas, a frase final de “Balada do louco”: “Eu sou feliz”.

Tribuna – Filme, novela e shows. Este ano parece ser especial em sua carreira. Há muito a comemorar?

Jane Di Castro – Essa é a minha luta. Fiz 51 anos de carreira e estou sendo mais reconhecida agora, nacionalmente. Fiz vários trabalhos, inclusive na TV Globo, em novelas, mas agora a Gloria Perez, maravilhosa, me deu esse papel fazendo eu mesma. As pessoas antes me viam, mas não sabiam meu nome. É a primeira vez que uma artista transexual faz novela usando o próprio nome. Também fui a primeira trans a cantar numa novela. Já fiz três novelas da Glória: “Explode coração”; “Salve Jorge”, quando eu cantei no cabaré das traficadas; e, agora, faço participações esporádicas em “A força do querer” como diva do Nonato. Um presentão e uma coroação. Este ano está sendo muito bom para mim. O filme também está sendo muito visto e por onde eu passo as pessoas falam que viram “Divinas divas” e se emocionaram.

Como foi se ver protagonista no cinema?

Foi perfeito me ver na tela. Fiquei muito emocionada. Vi pela primeira vez no Festival do Rio. Inclusive, a declaração do meu marido eu não sabia e nem ele se lembrava de ter chorado. Quando ele foi entrevistado, a Leandra pediu para eu me retirar. Eu saí, fui para um bar e depois voltei. Na primeira vez em que assisti, chorei muito, fiquei em prantos. Estou acostumada a saber que ele me ama, porque ele vive comigo há muitos anos. Mas fazer uma declaração de amor para o mundo ver, dando a cara à tapa, achei muito corajoso e digno. Sempre brinco que a estrela do filme é o Otávio.

O filme revela uma história de muito sofrimento. Ainda é assim?

Sofri muito no começo da carreira. Era uma ferida aberta que hoje já cicatrizou. Hoje levamos tudo na brincadeira, rimos. Estamos vivas e vencedoras. Não posso reclamar da minha vida, estou há 51 anos em cena, sou uma pessoa de teatro e ainda faço muito teatro. A televisão chegou muito tarde para nós todas. Naquela época era tudo proibido. Hoje está tudo aberto. Nós abrimos caminho para a nova geração. Tudo foi conquistado através de nossa luta.

Enquanto viviam, percebiam que estavam abrindo esses caminhos?

Ninguém sentia. Achávamos que aquilo tudo ia acabar e que não seríamos artistas respeitadas. Fomos derrubando tsunamis, destruindo muros. Quando comecei minha carreira, achava que era uma brincadeira. Não havia respeito pela ditadura, éramos tratadas como loucas. Era o “Baile das loucas”, tudo no pejorativo. Lutamos para que fosse melhorando, e melhorou muito. Nunca imaginei que um dia fosse me casar com meu marido. O conheci quando era um garoto, com 18 anos e eu com 19. Estamos juntos há 50 anos e tenho quatro de casada.

Ainda há portas por abrir?

Hoje temos que passar o bastão para as novas. Elas que lutem, porque vivem num paraíso. Precisam assistir ao filme para parar de reclamar e ver o que fizemos e passamos para que possam desfilar numa passarela e estar numa tela de televisão.

Seu nome surgiu como?

Quando estreei, em 1966, em “The girls”, meu nome era Geórgia, em homenagem à manequim da Casa Canadá que fez o filme “Boca de ouro”. Mas depois da estreia tive que mudar, porque já tinha outra Geórgia, mais conhecida. Aí um diretor me deu esse nome de Jane. Um nome que eu não gostava. Só Jane. Quando chegou 1980, a Bibi Ferreira me dirigiu em “Gay fantasy”, na Galeria Alaska, e foi ali que falou comigo: “Jane, tira esse nome. Jane só, não dá, porque já tem uma famosa, que é a Jane do Tarzan”. Aí ela perguntou meu sobrenome, e eu falei: “De Castro”. Mas o “Di” fui eu quem coloquei, uma intuição que depois, quando fui a uma numeróloga, ela aprovou. Botei o “Di” em homenagem àquele pintor, Di Cavalcanti, de quem fui amiga. Ficou um nome meio italiano, bom, gostei. Dali para a frente, as portas foram se abrindo mais. Nas primeiras notas que saíram como Jane Di Castro, começou a pegar meu nome. Na realidade, um artista tem que ter mesmo sobrenome. Não pode chamar só Cláudia. Tem que ter um sobrenome. Você vê que a cantora Claudya não aparece, porque não tem sobrenome. Elis botou Elis Regina. Quem me deu essa dica foi a Bibi Ferreira.

Sente peso em sua idade?

Não me acho velha. Estou muito bem, muito em forma. Vejo muitos jovens velhos. É tanto elogio que me esqueci da idade. E não acho que 69 seja uma pessoa velha. Nem tenho 70 ainda. Sou a mais nova do grupo.

Sentiu o tempo passar?

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Tive uma crise quando fiz 50 anos. Mas foi rápido, porque não parei de trabalhar. Continuo com esse glamour. Estou sempre com roupas bonitas. Não viu no final do filme, eu cantando “Non, je ne regrette rien”, em francês, bem maquiada, bem vestida, com o povo em pé, aplaudindo? Como posso ficar triste? Tenho é que agradecer a Deus por estar viva e fazendo sucesso.

O glamour está presente 24 horas?

Tenho meu trabalho, faço comida, sou normal como todo mundo. Meu glamour é mais quando estou no palco. Saio na rua bem arrumada porque cobram muito. E como também sou cabeleireira, tenho meu salão, sou obrigada a estar sempre arrumada, de cabelo bonito e batom. É uma vaidade minha. Não dispenso o batom.

Quando pensa na sua caminhada, a quem precisa agradecer?

Meu marido, que sempre me deu força e foi meu fã número 1. Quando eu falava em abandonar, ele falava: “Não! Você canta muito bem e sem o palco você não vai viver”. Nos anos 1960 eu abandonei uma época, fiquei quatro ou cinco meses sem fazer show, e ele me viu muito depressiva

A forma como a Gloria Perez trata a questão de gênero na novela te representa?

Ela está contando muito bem, com muita dignidade, mostrando a realidade das transexuais e dos travestis. Ela está perfeita, fez pesquisa para isso e não está enganando ninguém. Aquilo é uma realidade.

Vivemos entre o reconhecimento do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e notícias frequentes de violências contra a comunidade LGBT. Qual leitura faz da atualidade?

Vejo muito retrocesso. Acho que a homofobia e o preconceito nunca vão acabar. Temos que lutar contra isso. Se todo mundo sair do armário, vamos ser maioria. Tem muito gay no mundo. Fui agora em Petrolina e parecia um formigueiro saindo gay da terra, nunca vi tanto travesti, tanto gay, tanto viado no sertão. Fiquei louca. Aí a gente chega a uma conclusão: a gente nasce assim. Ninguém pede para nascer desse jeito, e não é doença.

Sua arte é eminentemente política?

No meu show, falo muito de política. Sempre fiz do palco o meu palanque. Foi assim que consegui, que conseguimos. Não precisamos de Parada Gay, nem de movimentos. Nosso movimento era em cena.

 

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