Bem-querer


Por Renan Ribeiro

26/02/2021 às 07h00

A ficha que vai cair vem sempre sem avisar. Ela toca o chão das nossas certezas e abala a estrutura toda do pensamento em um momento qualquer, sem que se queira, sem que se peça. Isso toca para mim tanto nos grandes e complexos problemas da humanidade, quanto nas pequenas percepções de passar por essa experiência. Geralmente, esse pequeno despertar ocorre em momentos de contemplação, que têm se tornado cada vez mais raros. Falo sobre aqueles instantes em que a cabeça está livre para se entregar aos sentidos, sem pressa e sem foco em outros assuntos.

A tecnologia, a pressão por estar sempre fazendo algo, o conceito de ‘não perder tempo’ têm minado os espaços para que possamos notar o extraordinário, que não desiste de nos chamar a atenção para o banal.

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Dia desses, estava pensando nas coisas que nos disparam pequenos grandes momentos de felicidade dentro do cotidiano. Aquela fraçãozinha de segundo antes que algo muito agradável ocorra. Como quando o cãozinho de estimação percebe que alguém vai chegar. A ponta do nariz começa a se mexer, ele levanta a cabeça, fica atento aos sons e, ao mínimo sinal de toque no trinco do portão, sai correndo para a porta para receber a pessoa, com o rabinho fazendo o mesmo movimento que um limpador de para-brisa.

Ocorre também quando você acorda, tem a impressão de que está atrasado, torce para ter mais um tempinho de sono a mais e bate os olhos no relógio e vê que ainda faltam duas horas para o despertador tocar. Ou quando você deixa alguma tarefa doméstica para fazer depois, se lembra de que não fez e, na hora em que entra no cômodo, onde havia bagunça, tudo está no seu devido lugar, como se alguém tivesse lido seus pensamentos e executado exatamente o que você precisava fazer.

Tem aquela alegria ansiosa da criança que entende que concluiu o dever de casa e pode, finalmente, deixar os cadernos e se entregar à brincadeira. Ou quando a senhorinha que ama plantas vê que há uma mudinha disponível para que ela possa replantar quando chegar em casa. A sorte de zapear a TV e chegar a um canal que vai exibir o filme que você queria ver em um horário no qual você vai estar disponível. Aquele sentimento presente naquelas conversas em que a pessoa sabe muito sobre o assunto abordado e fala com tanto entusiamo e se sente tão confortável ali, que contagia o interlocutor.

Há uma infinidade de exemplos, que observei e anotei ao longo dos últimos dias. Sigo na busca por encontrar boas pistas para notar essas situações. Já que os objetivos se tornaram mais curtos e estão mais voltados para o presente estado das coisas, pretendo me dedicar cada vez mais a provocar esse fluxo de ações e situações que despertem o que há de melhor no outro a qualquer hora do dia.

Tenho comigo a impressão de que desfrutar esse tipo de observação traz um sentimento de leveza momentânea, de despertar para o corpo e a mente, alcançar o entendimento de que coisas boas que continuam acontecendo. Apreciar o riso, o bem-estar e o bem-querer como se não fosse necessário se preocupar com mais nada. Abraçar essas sensações e seguir o dia com um pouco mais de vivacidade e menos afetado por conta das coisas sobre as quais não tenho controle. As alegrias, por hora, parecem estar contidas nessas pequenas manifestações.

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