Transpondo as barreiras em direção ao sonho


Por Renan Ribeiro

22/03/2019 às 20h25- Atualizada 22/03/2019 às 20h28

Para quem demorou a ter e construir oportunidades de acesso, entrar em alguns lugares é uma grande barreira a ser quebrada. Ainda há muitos obstáculos que se põem de maneira invisível na nossa frente. São tão altos e tão sólidos, que muitas vezes, parecem intransponíveis. Mas vez ou outra, se conseguimos mudar o olhar e se permitimos que as portas se abram, todas as paredes e muros criados para segregar, podem ruir. O que vem depois, é o encantamento, o crescimento, a formação, o vínculo, a memória afetiva.

Foi quebrando todas essas barreiras, que me vi, pela primeira vez, diante de um dos meus maiores ídolos. Sentado na fileira II da Plateia A, do Cine Theatro- Central, assisti, maravilhado ao show da turnê Semente da Terra, de Milton Nascimento. Uma noite de sonho, que eu custei a acreditar que tinha vivido realmente. Estava a poucos passos dele e a grande responsável por isso, estava ao meu lado, minha mãe.

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Foi ela que, na infância, me apresentou à voz de Milton. Não só a dele, mas a de muitos outros cantores da música brasileira. Foi com um aparelho de som National, que ela comprou com o dinheiro de seus primeiros salários, que eu aprendi a gostar das canções cantadas por ele. Ouvia o LP de “A Barca dos Amantes” para chegar ao “Amor de Índio”,que na época era uma das minhas canções favoritas. Via a paixão da minha mãe pela estampa da capa do disco “Geraes”, algo que acabei herdando o gosto e, justamente por marcar a minha relação com ela, com meu pai e com o meu lugar no mundo, se tornou tatuagem. Um trem, montanhas, sol, algo que resume muito, resume tudo. O álbum “Geraes” veio parar em minhas mãos em formato de CD, bem mais tarde, quando eu já tinha o meu próprio salário e é um dos nossos favoritos.

Ficamos eufóricos, novamente, quando a turnê “Clube da Esquina” foi anunciada um ano depois. Mas dessa vez, não pairaram dúvidas. Nos apertamos aqui e ali para podermos ir. Outra noite de sonho, só que um sonho diferente. Nele, Milton falava dos encontros, cantou as Minas Gerais que nós dois temos entranhados na pele e na alma. Com a plateia, Bituca conversou sobre a importância dos laços de amizade. De estar e ser pelo outro. De saber que contando com o incentivo de quem gosta de você, é possível ir mais longe, assim como também é possível levar mais gente adiante. Ele contou que foi o amigo Márcio Borges que o incentivou a compor. Borges insistia para que Milton, além de interpretar, desse voz às próprias palavras. Foi assim, que um dia, narrou ele, os dois se sentaram para escrever uma música e saíram de lá com três. São essas conexões e incentivos que levam as pessoas a alcançar o sucesso.

Bituca também falou da relação com a mãe, Lilia, a quem homenageou tocando a canção que leva o nome dela, mas que não tem letra, “porque nenhuma letra seria capaz de descrever a beleza dessa mulher.” As relações todas, inclusive a com o filho, a quem agradeceu ao final da apresentação, tocam, ensinam e despertam. Fazem você querer se mexer, na cadeira e na vida. Ser melhor, por você e pelos outros. Não à toa o pranto vem em cascatas quando ele canta “Clube da Esquina nº2”. As trajetórias individuais, com seus encontros e despedidas passam diante dos olhos. Impossível ficar indiferente a isso.

Realizei um sonho, mas um novo se fortaleceu enquanto a experiência acontecia. O sonho de que mais pessoas possam viver momentos semelhantes. Que todas aquelas barreiras de acesso, que agora parecem se erguer de maneira mais impiedosa e mais inexorável que nunca, sejam implodidas. Que os sonhos não envelheçam, nem sejam perdidos no meio das desigualdades que marcam nossos lugares na sociedade. Que todos tenhamos acesso e saibamos que o Central e os demais espaços culturais da cidade precisam ser acessíveis para todos. Que precisam estar a serviço do povo. Afinal, “todo artista tem que ir aonde o povo está. Se foi assim, assim será”. A arte é transformadora e essa potência não pode estar restrita a quem pode. Que dela floresça o acesso e que por meio dela, se possa recobrar a capacidade de sonhar e viver o sonho.

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