Enxurrada


Por Renan Ribeiro

20/11/2020 às 07h00

Tudo vai acontecendo pelas beiradas. As janelas de um lado da casa testemunham o céu aberto, sol no alto, nuvens caminhando tranquilamente. No fundo de casa, o cenário é bem diferente. O cinza vem fechando os tons aos poucos. Começando sua caminhada aparentemente lenta e paciente. Poucos minutos depois acontece a virada. O cinza azulado toma tudo, em todas as direções. As nuvens não passam mais a sensação de leveza. De repente, trovoadas causam pequenos sustos e anunciam o som que vem na sequência, e a tempestade começa.

Os primeiros trovões vêm acompanhados de um grito da mãe na infância: corre já para dentro. Era o sinal de que a brincadeira na rua tinha acabado naquele dia. As tardes chuvosas em que ficávamos recolhidos em casa eram meio melancólicas, e os temporais provocavam até uma certa irritação. Mas as coisas mudam muito de significado com o tempo. A escola ensinou que períodos de seca são ruins para quem produz o alimento. O que vinha para a mesa dependia muito de como as chuvas se comportavam. Nem a mais, nem a menos. O desejo no campo era pela medida mais equilibrada.

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Chuva mansa durante a noite funciona como um sonífero natural. Ajuda a relaxar depois de um dia agitado. Se, pelo contrário, o que se forma é uma tempestade forte e densa, o efeito é desassossego. Para o jardim da vizinha, o banho de chuva sempre parece um santo remédio, deixando o verde mais verde e fazendo as flores ficarem mais vistosas, como alguém que ajeita a postura corporal e fica mais alinhada.

No entanto, a chuva também pode causar trauma. Há famílias que perdem tudo o que têm nas primeiras águas da estação. Vivem esse desespero sazonal sabendo que a solução do problema não depende exclusivamente delas. Estragos que fazem perder o sono, o prumo e a paciência. Todos ano as manchetes sobre esse assunto se repetem, e a situação de quem enfrenta os alagamentos não se altera. A imagem de casas invadidas pela corrente de água, que sobe e marca as paredes com uma cor escura fixa na cabeça. Barrancos desmoronam, pedaços de imóveis em áreas de risco são levados. Móveis, objetos e todo o resto, danificados. Prejuízos enormes se acumulam. Os rostos e histórias de pessoas em choque, sem saber como seguir, ainda ferem o espectador.

O jornalismo me deu o termo precipitação como sinônimo para chuva, mas eu só entendi de verdade o porquê disso ao longo das últimas semanas. Como desde o ensino médio minhas tardes são vividas em espaços longe de casa, não via o efeito das chuvas onde moro. Só ficava sabendo o que ocorria por relatos e imagens. Pude ver o que acontece quando chove granizo. O quanto o barulho da chuvarada em estado sólido pode ser assustador. Me espantei com a enxurrada de todo o bairro, que desagua na parte em que eu moro. A rapidez com a qual a correnteza é formada me impressiona. Toda vez que eu a vejo, consigo imaginar o tamanho da aflição de quem tem a casa tomada por esses dilúvios.

Me assustei ao ler a previsão do tempo e ela indicar a ocorrência de 60 milímetros de chuva em um dia só. Essa medida dá a sensação de uma quantidade pequena. Mas não é bem assim. Quando o resultado dela vem, você percebe a força que as águas têm, e até o volume passa a significar algo diferente. Ter consciência de que esses estragos acontecem em função da ação do homem é o primeiro passo para mudar essa imagem triste. Mas ainda há muito trabalho para que essas cenas sejam superadas. Quem sabe um dia tenhamos manchetes que contem a história de uma solução nossa e criativa, que dê conta de mudar a vida dessas pessoas. Que possamos mudar a relação com as chuvas e ela se torne mais respeitosa e menos traumática.

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