Bolo de aniversário


Por Renan Ribeiro

16/10/2020 às 06h40

Os bolos estão entre os meus itens de receitas caseiras preferidos, e não falo de nada super elaborado. Só precisa ser gostoso. O cheiro doce anuncia a hora de desligar o fogo, se espalhando pela casa inteira. Massa básica, simples, que no caderno de receitas da mãe tem como nome “bolo fofinho”. Uma fatia e um cafezinho fresco é o que basta.

Em volta da antiga forma redonda, os cafés da tarde sempre foram uma importante forma de socializar. Depois que a Branca, nossa primeira cachorrinha, faleceu, a casa perdeu os sofás na sala, de modo que foi necessário passar a receber as visitas na cozinha. Na verdade, isso já acontecia antes mesmo de retirarmos os assentos. A cozinha é o espaço em que passamos boa parte do tempo, quando não estamos envolvidos em outras atividades.

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Dia desses, senti uma vontade súbita de comer bolo de aniversário, que é um pouco diferente do bolo comum. Consideramos bolo de aniversário aqueles que têm alguma coisa a mais que a massa. Geralmente, recheio e cobertura. Essas ideias tortas surgem quando menos se espera e grudam de uma forma inexplicável na cabeça. É semelhante ao que acontece com aquelas músicas ditas “chicletes”. Podemos até não gostar delas, mas na primeira distração, estamos cantarolando o refrões delas o dia inteiro.

A vida seguiu e eu fui lavar umas louças. O danado do bolo de aniversário permanecia grudado na cabeça. Comecei a tentar entender o porquê. Comentei com a minha mãe e, juntos, nos demos conta de um dado curioso: o último bolo que comemos foi do aniversário do meu pai, pouco depois do anúncio da pandemia. São mais de seis meses sem celebrar, como se deve, a vida das pessoas que amamos, com direito a abraços, encontros, festa, bolo, guaraná e muitos doces, como diz a musiquinha.

Mesmo com o distanciamento, não deixamos de lembrar e parabenizar as pessoas pela nova idade ou por outra conquista. Tanto que, pela primeira vez, participamos de uma festa de aniversário por meio de conferência virtual. Também pela primeira vez estivemos em uma colação de grau feita com cada formando em sua casa. Alguns amigos chegaram até a ser convidados para casamentos em que a cerimônia foi realizada via aplicativo. Em alguns desses encontros possíveis, me emocionei um bocado. A impossibilidade de viver um momento único na vida, acontecendo da maneira que dá, sem os elementos com os quais estamos acostumados, cobre com um certo véu de tristeza o que deveria ser pura alegria e emoção.

Como uma coisa puxa a outra, acabei percebendo que tivemos pouquíssimos momentos de diversão e lazer nesses últimos sete meses. Não teve café com conversa jogada fora, não teve encontro nas mesas dos bares da cidade, não teve almoço na casa de amigos ou familiares, não teve passeio, não teve show ao vivo, não teve festa. As notícias difíceis, no entanto, não pararam de chegar. Não é exagero dizer que em alguns momentos da quarentena, estivemos expostos a mais problemas do que tínhamos condições de lidar. A balança não se equilibrou.

Os respiros foram dados por algumas ligações, uma série de mensagens, pelas apresentações ao vivo de artistas que amamos, pelos filmes, músicas, teatro e livros. As expressões artísticas, de forma geral, ajudaram muito a manter a sanidade mental. Até mesmo as pessoas mais caseiras que conheço se irritaram em algum momento. Não pelo incômodo de estar em casa, mas pela impossibilidade de sair e garantir a segurança.

No dia seguinte, ainda estava com vontade de comer bolo de aniversário. Aí, outro elemento muito importante nesse período começou a atuar: a conexão. Sem saber, meu irmão passou em uma casa de bolos e trouxe um belo exemplar para casa. Com cobertura, recheio e tudo o que tem direito. Faltou o aniversário para comemorar, mas não faltarão oportunidades. Essa situação vai passar. Certamente, depois desse momento, as comemorações vão ter um gosto muito mais especial.

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