Sonhos e realidades
Uma frase adesivada em um carro e a distância entre sonho e a realidade despertam questões sobre a ligação entre uma coisa e outra
Vesti a PFF2, liguei os fones de ouvido e selecionei uma lista de músicas agitadas, que ajudam a manter a caminhada em um ritmo legal. Lá pela terceira ou quarta volta na praça em que me exercito, comecei a me deter a alguns detalhes. Havia alguns dentes-de-leão apontando no canto do passeio, por exemplo. Do outro lado da praça, um homem passeava com um cachorro de porte grande, tranquilo e dócil. Reparei também em um carro branco, que já estava estacionado antes da minha chegada, na lateral da praça. Ele tinha um decalque com tipos bem desenhados, no qual lia-se: “Toda realidade um dia foi sonhada”.
O breve período me fez parar. Fiquei alguns segundos encarando a sentença. Imagino que a intenção do proprietário do veículo era ter uma frase de efeito, positiva, que causasse impacto por onde o automóvel passasse. Talvez, o próprio veículo fosse fruto de um sonho da pessoa que colou o adesivo. Se o objetivo era chamar a atenção, comigo funcionou. Podia estar escrito “Foi Deus quem me deu”, ou qualquer outra frase comumente flagrada estampando as latarias pelos semáforos da cidade afora. Mas ele escolheu um caminho diferente.
Retomei meu trajeto pensando em exemplos positivos que pudessem ilustrar aquelas aspas. Logo veio à mente a notícia da formatura de uma grande amiga, que eu havia recebido naquela semana; na história de um conhecido que tinha conseguido começar em um novo emprego e estava se sentindo realizado com aquela conquista; a história de uma moça que foi morar sozinha em um novo estado e contava feliz sobre suas novas experiências.
Imaginei os esforços que cada um desses indivíduos precisaram empreender para chegar a cada uma dessas realidades. Até aí, a frase do carro fazia sentido para mim. Porém, fui picado pelo mosquito da discordância na volta seguinte. Nem todas as realidades foram sonhadas. A generalização me soou preguiçosa. Pensei no ano que acabou. Ninguém idealizava tantas mortes, dificuldades, tristezas e prejuízos. É difícil pensar que alguém pudesse sonhar e querer uma realidade tão desoladora. Imaginar que o cenário pudesse chegar a ser tão grave, por meio de dados e estudos científicos, era outra história. Pensei também nas vítimas das chuvas na Bahia e também do Norte de Minas. Seus depoimentos na TV e seus olhos perdidos na tragédia, enquanto falavam. Não havia qualquer possibilidade de sonho naquelas realidades.
Sou defensor ferrenho do direito de sonhar. Todos deveríamos ter condições justas para sonhar e criar realidades a partir de nossos desejos, porém, percebo que estamos muito distantes disso ainda. Sem contar com os acontecimentos que escapam de qualquer previsão. Impulsionado por essa energia de renovação que o Ano Novo traz consigo, eu proporia uma intervenção na frase do carro, estampando: “Que todo sonho bom crie uma nova realidade”. Que em 2022 tenhamos a oportunidade de voltar a sonhar e de construir realidades melhores.