Ninguém acredita


Por Renan Ribeiro

05/10/2019 às 07h00

Você pode até pensar: ‘lá vem ele falar de ônibus de novo’, mas é que passar muito tempo dentro dos coletivos pode ser inspirador. Não que eu não fique irritado ou sinta preguiça em depender do transporte público, há dias em que não ficar aborrecido é inevitável. Inclusive, passei por uma fase dessas de mau humor, recentemente; acontece quando algumas situações pegam onde mais dói, coisas da vida. Saí de casa cedo e azedo. Metal nos ouvidos para provocar algo em mim.

Entrei no primeiro coletivo, cabeça baixa, silencioso, cara de poucos amigos inconsciente. Segui o trecho completamente entregue aos meus pensamentos, sem reparar em nada. Ainda havia uma semana para enfrentar, e o ânimo não tinha me acompanhado naquela. Acho que cheguei a pescar algumas vezes no trajeto, porque também não há quem resista ao sono no balanço manso do ônibus, quando se acumula cansaço. Não demorou muito a chegar à primeira parte do destino.

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Hora de encarar o segundo trecho. Nesse, estava desperto. O ônibus cheio. Cheio de trabalhadores. Pessoas que, assim como eu, saíram cedo de suas casas para buscar o sustento. É nessa hora que o erro acontece. Imaginei que esse caminho seria silencioso e introspectivo, continuação do primeiro. Nada feito, para minha sorte. As pessoas que estavam naquele ônibus se conheciam. Elas se cumprimentavam. Conversavam animada e ruidosamente. Poderia incomodar às pessoas que costumam se doer por qualquer contato humano que não as envolvam.

No princípio, meu mau humor deu lugar à curiosidade, fui apenas acompanhando o fluxo. Até que uma conversa tomou a atenção de todos. Ela acontecia antes da catraca, mas chegava ao fundo do coletivo, porque houve alguém que interveio lá de trás. Não cheguei a entender o que foi dito. Mas a risada que contagiou todo mundo, me levou também. Dali em diante, todo mundo de certa forma participou do assunto. Até que o ônibus ficasse vazio, eu via traços de sorriso nos rostos. Não aquela alegria estranha e afetada que vemos em filmes. Algo muito mais palpável, natural e genuíno. A pessoa que puxou o assunto estava vermelha de tanto rir, daquele jeito engraçado que nos deixa com a barriga doendo. Pouco antes de descer, ela desejou uma boa semana a todos e não houve quem tivesse coragem de se negar a responder, desejando algo bom de volta.

Quando eu acionei a campainha, tinha largado o mau-humor para trás. Eu não tinha direito de deixar os problemas me afetarem tanto a ponto de desrespeitar meu riso. Para quem luta, para o povo pobre, a vingança pode e deve ser mel e prazer, como disse Jaloo. Eu não tenho como evitar a tristeza diante de situações que vivo. Ninguém tem. Somos humanos, corre sangue nas nossas veias. Mas estou atento. Olhar para as outras pessoas me faz ver que a vida vai além e é rápida. Corre e nos balança, como os coletivos fazem, o que nos dá a certeza que o caminho é ir em frente.

Mas é como minha família costuma dizer: “se eu paro para contar, ninguém acredita”. As vezes, tudo que a gente precisa é sair do nosso mundinho e olhar para o que tem ao redor. Numa dessas, a gente ganha o dia e muda tudo.

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