Nem doce, nem criança


Por Renan Ribeiro

02/10/2020 às 07h00- Atualizada 27/09/2021 às 15h08

O Dia de São Cosme e São Damião era sempre cheio de crianças andando em grupos nas ruas, com sacolas, mochilas e outros objetos de armazenamento para os pequenos pacotes de doces de papel verde e branco. No bairro, o movimento começava logo cedo. Muitos andavam pelas ruas mastigando balas e pirulitos, enquanto contavam a quantidade de portões no qual bateram por meio do número de embrulhos.

Era engraçado ver as crianças abrirem as pequenas embalagens e expressarem surpresa quando encontravam coisas das quais elas gostavam muito, ou a decepção momentânea de só ter no pacotinho doces que não agradavam ao paladar delas. A barganha por uma coisa ou outra também era comum.

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Havia criança de todo jeito subindo e descendo as ruas. Algumas caminhavam com um adulto por perto, com boné e filtro solar para proteger do sol. Outras eram só empolgação e um par de chinelos gastos. Fato é que nenhuma delas ficava indiferente a nada do que era oferecido.

Uma das pessoas que celebrava o dia de São Cosme e Damião no bairro tinha a tradição de oferecer bolo, guaraná e cachorro quente. A casa dela, com o passar dos anos, se tornou uma referência para os grupinhos que andavam atrás dos pacotinhos de doce. Era uma ansiedade. A distribuição dos alimentos acontecia já de tardinha. Era como uma boa recompensa para quem passou o dia todo peregrinando atrás de guloseimas. O portão dela, de repente, se tornava algo semelhante a uma colmeia cheia de jovens abelhas. Que passavam, comiam o lanche e partiam. Outras chegavam e repetiam o gesto, que seguia até a noite, ou até o fim dos estoques.

Vez ou outra, aparecia entre as crianças alguma que tentava ser a mais esperta. Pegava o embrulho, disfarçava e voltava para tentar buscar outro, pedia em nome de supostos irmãos, fazia uma expressão de súplica. Facilmente identificáveis, raramente eram atendidas em seu pleito. Havia também uma comunicação parceira entre os grupos. Quando encontravam alguém distribuindo saquinhos, avisavam a outras crianças que ainda não tivessem passado por um determinado itinerário, para que não deixassem de ir a um ponto ou outro.

Até mesmo quem não saia de casa para buscar o ‘São Cosme e Damião’, ficava feliz quando algum pacote chegava sem ser esperado. O dia 27 de setembro, por aqui, sempre teve esse frescor infantil, embora, a cada ano, o número de crianças circulando em busca de doces diminua a olhos vistos. Assim como as promessas e intenções direcionadas aos santos.

No último domingo, ainda tendo consciência de que o distanciamento social, que para alguns parece não importar mais, afastaria as crianças do costume, senti uma ponta de esperança de ver algum movimento. Cheguei na beirada da janela mais vezes do que tenho o hábito de fazer, com a expectativa de ver alguma criança correndo atrás de guloseimas. Não aconteceu. Ano estranho esse 2020. Eu sou todo saudade.

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