Testemunhas do absurdo
– Para que você quer desenterrar isso?
A pergunta dirigida ao então estudante de jornalismo paulista Emílio Coutinho confirma o quanto o Brasil é um país avesso à construção da memória, principalmente daquela que incomoda e nos leva a olhar para os erros produzidos pela sociedade, muitas vezes com o respaldo da mídia.
Duas décadas depois, Emílio buscava resgatar a história da Escola Base e o destino dos protagonistas do maior crime da imprensa brasileira. Em 1994, os donos de uma instituição de ensino localizada na Vila Gumercindo, Zona Sul de São Paulo, foram sentenciados ao linchamento público.
Além deles, pais de alunos e até professores foram acusados de obrigar crianças a participarem de sessões de orgia dentro da unidade destinada à educação infantil. A versão inverídica foi construída por duas mães de alunos histéricas, um delegado sedento por fama e diversos jornais, rádios, TVs e revistas do país ansiosos por furos jornalísticos de qualquer natureza, até os sem provas.
Por causa da repercussão do caso “Escola Base”, o colégio e as casas de seus donos foram alvos de vandalismo, os suspeitos torturados na delegacia, presos, além de serem metralhados pela opinião pública. Ao final da “investigação”, a descoberta: tudo fora inventado. Não houve pornografia, orgia, abuso sexual, nem nada parecido com isso.
A espetacularização do caso não foi acompanhada de uma retratação à altura. O fato é que, 23 anos depois do episódio que destruiu a vida daquelas pessoas, a reconstrução de cada uma parece não ter acontecido. “Quem tem a imagem pública manchada pela mídia não consegue recuperá-la”, afirmou Felipe Penna na abertura do livro produzido sobre o assunto por Emílio.
Infelizmente, nem a imprensa, nem o Brasil aprendeu muita coisa com isso. Todos os dias, pessoas são condenadas por sua aparência, por sua crença, por sua cor, por sua condição social, por suas orientações sexuais. Muitas acabam barbarizadas, em frente às câmeras dos celulares, em imagens compartilhadas milhares de vezes nas redes sociais, as quais nos tornam testemunhas do absurdo.
Enquanto insistimos em ignorar o que nos incomoda, moradores de rua são “lavados” da calçada pela Prefeitura de São Paulo, que os condenou a lixo humano. Mas o que acontece com o outro não é importante, não é mesmo, desde que as ruas estejam limpas.