Aparecida, a filha do Brasil


Por Daniela Arbex

16/07/2017 às 07h00

Aparecida é uma mulher miúda, apesar do corpo farto, cabelos tingidos de ruivo e um sorriso fácil. Há três anos, ela é funcionária de uma conservadora que presta serviços para empresas da cidade. Trabalha na limpeza desde que se entende por gente, embora nem sempre tenha sido tratada com humanidade. A função que, recentemente, lhe rendeu uma remuneração mensal mudou sua história. Foi aos 50 anos que ela conquistou tardiamente a carteira assinada, um direito básico de qualquer trabalhador. Está no céu, pois, com a remuneração fixa, não precisa mais usar as roupas que as antigas patroas doavam para ela. Não que tenha luxo – adianta -, mas prefere vestir alguma coisa que lhe caia bem ou que, pelo menos, seja do seu tamanho. Pela primeira vez na vida, a funcionária pode experimentar o prazer de ter gosto próprio. Antes não podia escolher.

– Eu vestia as roupas das muié, não tinha uma roupa bonitinha, confessou, durante o horário do café.

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Há quase 20 anos, quando o filho único de Aparecida completou sete de idade, o marido picou a mula deixando para trás a criança, a mulher e muita dificuldade. Com apenas as primeiras séries do ensino fundamental, ela continuou a fazer a única coisa que rendia dinheiro imediato: faxina. Durante 17 anos, trabalhou em dezenas de casas diferentes. Serviço pesado, sem hora para acabar. De cada lugar, ela saía com fome e quantia insuficiente para alguém que precisava ser pai e mãe.

– Meu filho pedia biscoito, queria fruta, precisava de um agasalho. Eu dava o que podia, comprava o gás e nunca sobrava para pagar o INSS. Trabalhei 17 anos sem pagar nada. Não tenho como resgatar o tempo perdido, diz, enquanto conversa sobre os rumos da reforma previdenciária no Brasil.

– Se essa lei for embora, em nome de Jesus, eu me aposento, comentou, esperançosa, um dia antes de o Senado votar a reforma trabalhista, cuja aprovação abriu caminho para novos retrocessos de direitos. Agora, por exemplo, mulher grávida poderá ser empregada em local insalubre, um dos “avanços” do texto sancionado por Temer.

– E se a reforma da Previdência for aprovada na esteira da reforma trabalhista? O que a senhora pretende fazer, questionei.

– Nada, uai, vou continuar a ser burro de carga. Embora meu serviço seja bom, estou muito cansada. Tenho mais de 30 anos de trabalho duro, boa parte deles sem direito a folga, 13º, nadinha. Apesar de tudo, não posso reclamar. Meu filho hoje está com 26 anos. É protético, pai de dois filhos. Sabia que meus netos têm tudo arrumadinho? Nunca precisaram usar roupa emprestada de ninguém, orgulha-se a auxiliar de limpeza que vê no rapaz a chance de vida melhor que ela não pode ter.

Logo depois da nossa conversa, as luzes se apagaram no Senado. Com o país mergulhado na escuridão política, econômica e social, resta a Aparecida cumprir, servil, a sua sina. Ela, que passou uma vida inteira alheia a qualquer tipo de proteção ou benefício trabalhista, ainda terá que esperar pelos novos rumos de um país desgovernado, no qual a aposentadoria poderá se tornar artigo de luxo.

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Olhando para essa brasileira, enxergo a nação de Zé Ramalho e de todos nós. “Êh, oô, vida de gado, Povo marcado, Êh, Povo feliz.”

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