Eu quero pontes no lugar de muros
Um mundo cada vez mais interconectado tem erguido muros e cercas para bloquear aqueles que considera indesejáveis. Foi o que revelou a premiada reportagem da Folha de S.Paulo, cuja equipe visitou quatro continentes para mostrar o que e quem está por trás deles. Ilustrada com imagens em 360 graus, capturadas por drones, minidocumentários e videográficos, a série vencedora do Grande Prêmio Petrobras de Jornalismo, entregue no último dia 27 de novembro no Theatro Municipal do Rio, faz uma imersão em diversas realidades para que o leitor/espectador entenda, ou pelo menos busque entender, o que é ser um refugiado ou excluído. “O meu maior medo é o muro que Trump pode construir nas mentes e nos corações dos americanos e até dos mexicanos que estão lá. É o muro mais perigoso: vem o racismo, vem o apontar de dedos. Em El Paso, as pessoas têm medo de ir à escola, ao trabalho. É um ambiente de pânico e terror”, afirma o padre Javier Calvillo, 47, diretor da Casa do Migrante de Ciudad Juárez, sua cidade natal.
Esse é apenas um dos mais de cem depoimentos desconcertantes recolhidos por um time de jornalistas que honra nossa profissão. Ao vestir a pele do outro e calçar os sapatos alheios, colegas dos quais me orgulho dão o exemplo do que é um verdadeiro exercício de empatia. Colocar-se no lugar de quem não tem lugar no mundo é a melhor forma de enxergar o espaço que a gente habita.
Usar barreiras e muros para apartar vidas e memórias não é uma novidade na história, apenas uma repetição da intolerância que extermina quem não é bem-vindo. E os demais são aqueles que incomodam, os que não têm voz, os excluídos confinados a territórios. A estes destinamos o esquecimento. Assim, invisibilisados, é mais fácil enterrá-los vivos. A vitória de uma reportagem em profundidade com um forte viés social é emblemática, principalmente no momento em que imperam ideologias de ódio.
Um mundo de muros, o nome da reportagem vencedora, também diz muito sobre a atual realidade brasileira que assiste, impactada, aos esforços para que os estigmatizados pela loucura voltem a ser vistos como um perigo social. O cuidado em liberdade, uma bandeira da luta antimanicomial desde o final da década de 1970, volta a ser ameaçado pela incapacidade de superação das diferenças na forma de olhar e de tratar. Hoje a Rede de Atenção Psicossocial conta com 297 serviços extramuros, sendo 72 Centros de Atenção Psicossocial, 194 residências terapêuticas, 31 unidades de acolhimento e 127 leitos SUS em 22 hospitais gerais. É claro que ainda há desassistência, porque a demanda é muito maior do que a oferta, mas o esforço diário de profissionais da saúde é buscar dar melhor resolutividade aos serviços. A política de saúde mental, no entanto, parece querer reforçar práticas asilares aos desmontar os dispositivos dessa rede, suspender repasses e estimular que comunidades religiosas assumam o tratamento de pessoas com dependência química. A democracia é antimanicomial, afirmaram membros da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial, na recém publicada Carta de Caruaru.
Não é tempo de reerguer muros sepultados ou assistir impassível ao surgimento de barreiras de concreto que separam etnias e territórios. O que falta no mundo são pontes que nos aproximem do humano.