Tudo que ela gosta de escutar


Por Wendell Guiducci

27/12/2016 às 07h00- Atualizada 27/12/2016 às 09h13

Romildo era um jornalista veterano. Foi repórter de esporte, polícia, geral, depois editor de esporte, polícia, internacional. Agora era editor-chefe do moribundo periódico onde começara como mirim há 50 anos. Velhinho ponta-firme, como uma boa máquina de escrever Remington Standard.

O dono do jornal chamou Romildo para uma reunião.
– Romildo! As vendas estão caindo! As pessoas não leem mais jornal! Agora é tudo na internet!

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Romildo detestava a internet.

– Chamamos um consultor aqui que vai dar conta de tudo! Este é o Pablo!

Romildo cumprimentou o rapaz, um cidadão magérrimo e barbudo que usava óculos de aros vermelhos e cabelos desgrenhados. Devia ter uns 23 anos. E uns 40 quilos.

– Você deve conhecer o Pablo daquele canal do YouTube, o “Vem Ni Mim”!

Em seu canal, Pablo realizava “desafios” como comer dentes de alho crus, entrar pelado em um tambor de gelo, jogar canela em pó nos próprios olhos e dançar com gatos. Tinha dois milhões de seguidores. Estava bombadíssimo.

Mas Romildo, obviamente, desconhecia.

Romildo detestava o YouTube.

O menino barbudo de 40 quilos começou a falar várias coisas sobre trend topics, hashtags e algoritmos. E sobre vídeos de gatos, métodos de depilação e receitas culinárias.

– É o algoritmo, Romildo! Tudo está no algoritmo! – empolgava-se o dono do jornal, sem saber exatamente do que falava.

– Algoritmo? – questionou o velhinho. E o menino de 40 quilos explicou didaticamente.

– O algoritmo é que nem aquela música do Charlie Brown Jr.. Sabe aquela? “Eu falo eu falo tudo que ela gosta de escutar! Deve ser! Por isso que ela vem me procurar! Ha ha! Ha ha!” Sabe?

Ele cantava gesticulando, fazendo mãos de mano, mas Romildo, claro, não sabia do que se tratava.

Romildo detestava as FMs.

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E mãos de mano.

Ao fim da reunião, ficou decidido que o jornal não perderia mais tempo com apuração e investigação. E muito menos com opinião. E que o futuro ao algoritmo pertencia.

O velho jornalista saiu muito deprimido da sala.

Fora apresentado ao filósofo Chorão. “Tudo que ela gosta de escutar.”

Ele, o veterano que sabia empregar o pretérito mais-que-perfeito e estudara Adorno, Eco, Morin e Bejamin.

Quando tudo que precisava agora era Didi, Dedé, Mussum e Zacarias.

E um disco do Charlie Brown Jr.

Pixabay

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