A gente não quer só comida
– Tá tudo uma carestia danada -, lamenta um colega que encontro na saída do supermercado. Ele tem uma teoria.
– Supermercado agora cobra por sacola, já reparou? Se a compra dá pra encher uma sacola, é cem conto. Se dá duas, é duzentos. Três, trezentos. E por aí vai.
Passo minhas sacolas em revista e não tenho como discordar. Digo pra ele que o brasileiro está fazendo pra comer e só. Os remediados conseguem pagar o aluguel também.
– Pois é! Pois é, a gente tá parecendo robô, rapaz.
É aí que discordamos e digo-lhe que não, que não estamos sendo convertidos em robôs, mas em escravos. Ele protesta.
– Não, aí também não, porque a gente tem a liberdade da gente.
O que torna pior ainda a situação, treplico, evocando o pagode brega que nos habita: “O quê que eu vou fazer com essa tal liberdade?”. Defendo que se o brasileiro está fazendo só para comer, não tem liberdade alguma. A liberdade que tem é a do descanso regenerador que só serve a um propósito: colocá-lo de pé no dia seguinte para trabalhar mais.
– Então. Se ele só descansa e come o suficiente pra ter força pra trabalhar, é que nem o robô, que a gente bota na tomada pra recarregar a bateria.
Errado ele não está, mas insisto no meu ponto de vista de um novo tipo de escravidão. Defendo que liberdade é, como desejou Raul, “ter o prato entupido de comida que ‘cê mais gosta, de ser carregado ou carregar gente nas costas”. Direito de levar as crianças ao parque no sábado e comer espetinho de alcatra e picolé de manga. Andar de pedalinho. De passar uma semana em Piúma, passear de barco, banana boat, fazer churrasco e beber cuba libre. De festejar as bodas de zinco com a patroa em Buenos Aires. “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”, cantavam os Titãs no País dos Banguelas. “A gente quer saída para qualquer parte.”
Meu colega meneia a cabeça de lado, naquele movimento de quem não concorda nem discorda, aquele clássico aceno do “é, mas…”, e suspira.
– É, vamos ver onde isso vai dar.
Ele estende o punho, trocamos um soquinho empedernido e seguimos cada qual seu rumo.
No caminho de casa, ainda encafifado, um pensamento súbito me aterroriza: não estaríamos ambos certos? Depois da escravidão disfarçada não virá a fatal robotização? Pois aos escravos ainda resta a vontade de liberdade. E, portanto, a humanidade. Nos robotizados ela não mais existe. O que querem matar então? A gente? Ou a vontade da gente?