A Gabriela da Epiphone Vermelha


Por Wendell Guiducci

23/07/2019 às 07h10

Após algumas horas caminhando em falso no pavimento armadilhesco das ruas de Paraty, nos sentamos em um restaurante duas quadras distante do Largo da Matriz, atrás da Rua da Cadeia. Apetite atiçado por uma ou duas doses de Gabriela, a típica cachaça de cravo, canela e melado de cana da região, o arroz ensopado de lulas e polvos e mariscos e camarões de bom tamanho, abrasado com doses comedidas de pimenta malagueta, ajuda a aquecer o corpo. Peço uma cerveja. A dois metros de nós, uma moça que lembra também a Gabriela Cravo e Canela de Jorge Amado empunha uma guitarra Epiphone semiacústica e canta standards da música popular brasileira.

Sua voz é tão baixinha, seu dedilhados e arpejos idem, que o blábláblá das pessoas no restaurante às duas da tarde encobrem quase que totalmente a música que ela interpreta. Tento divisar, no murmúrio do salão nem tão cheio, as canções que essa Gabriela da Epiphone Vermelha canta. Ela vai da bossa nova à MPB canônica, de Tom Jobim a Caetano Veloso, de João Gilberto a Gilberto Gil, de João Bosco a Djavan, passa por Jorge Ben, visita o nordeste de Zé Ramalho e Belchior, o Clube da Esquina de Milton e Lô Borges. A cada número que ela termina, sobrepõe-se o zum-zum das mesas, o tilintar dos talheres, o mastigar das bocas ordinárias. Nenhum aplauso. Nenhum “bravo”.

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A Gabriela da Epiphone Vermelha está ali para servir de alto-falante de elevador. Ordens da casa: toque por quatro ou cinco horas, com um ou dois intervalos no máximo, não atrapalhe a conversa das pessoas e torça para que elas não se recusem a pagar o couvert – algo que elas podem e frequentemente fazem. Tais diretivas não estão em contrato, são um modus operandi do negócio, ao qual está submetida a maior parte dos músicos de bar do Brasil. Eu sei disso e tento não lamentar por ela entre uma garfada e outra nos moluscos e crustáceos. Ela conhece o jogo. Um homem que acaba de chegar, talvez um pouco encorajado por outras Gabrielas, não se mostra tão condescendente.

– Aplaude, gente! Pô, aplaude aí!

Ela dá um sorriso um pouco encabulado sob a cabeleira negra, reluzente à luz que entra pela janela ao lado, e agradece com um meneio de cabeça. Engata mais uma canção e a encerra sob o mesmo menosprezo do salão. Seu recém-defensor se indigna. Aplaude com força. Mais que aplaude: bate com raiva as palmas das mãos enormes uma contra a outra. É menos apreço por Gabriela e mais ódio pelo resto de nós, ocupados de nossas conversas e interesses, desprezando não só o talento da moça, mas a própria beleza da música em si, de toda a música popular brasileira parida no generoso século vinte de bossas, tropicálias e rocks rurais.

Recusamos a sobremesa e o cafezinho. Satisfeitos demais pela comida, gratos pela música, eu um pouco condoído da moça, da tragédia silenciosa que é a submissão da arte ao regime do entretenimento, pagamos a conta e nos levantamos para partir e ganhar novamente as vielas sinuosas dessa cidade velhíssima. Quem sabe um sorvete agora? Antes de alcançar a porta, junto as mãos e me curvo levemente em reverência à Gabriela da Epiphone Vermelha, tentando fazer-me entender. Nossos olhos se cruzam e quero acreditar que, quem sabe, tenha havido ali uma breve comunicação entre nós. Desço o degrau rumo à rua. Ela faz um acorde em alguma variação de lá menor. São três horas e será bom aproveitar o resto da tarde, pois é inverno e não nos resta mais muito tempo de sol.

 

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