Chocolate no asfalto


Por Wendell Guiducci

15/03/2022 às 07h10

É da natureza humana aglomerar quando de um acidente de trânsito. Uns poucos, para prestar socorro; outros tantos, por mórbida curiosidade; a maioria, para postar no Instagram. Portanto não foi nada inusitado quando o povaréu ajuntou em torno do caminhão tombado na esquina.
– Perdeu o freio e veio descendo, descendo, descendo e pá!, bateu nesses dois carros aí, ó! Trem foi feio mesmo, quase que pega os outros na calçada.
As rodas do bruto viradas para cima e o baú aberto, caixas e mais caixas espalhavam-se pelo asfalto quente das onze da manhã. Enquanto alguns socorriam as vítimas – duas mulheres com ferimentos leves -, outros cuidavam de descobrir qual era a carga.
– E esse trem marrom escorrendo no asfalto aí, gente?
O líquido espesso brilhava ao sol. Aos poucos, um aroma adocicado se misturou ao cheiro de óleo diesel e lona de freio queimada.
– É chocolate! Isso aí é chocolate!
Sentimentos confusos brotaram em meio à turba. Um arrepio e uma vontade doida de pular a faixa de proteção instalada agilmente pelos bombeiros. “Nunca vi bombeiro chegar tão rápido, crendospai!!”. Uma vergonha íntima pela alegria sentida diante da desgraça alheia. O desejo súbito de tomar um cafezinho. As sensações eram várias e poderiam ser lidas nas faces anônimas por um bom fisionomista.
Mas foi a jovem repórter que, no cumprimento de seu ofício, captou de orelhada a temperatura psíquica geral. Às suas costas, uma senhora falava ao telefone:
– Mariinha? Ô Mariinha! É chocolate, minha filha. Um caminhão inteiro! Tudo espalhado aqui no asfalto, derretendo nesse sol quente. Até dói o coração da gente! Ó, cê vai dando almoço pro Enzo aí que eu vou ficar aqui, tá ouvindo? Vou ficar aqui que vai sobrar chocolate pra nós.
Braços cruzados embaixo do solão inclemente, procurando a sombra esquálida de um poste próximo, a senhora montou guarda por horas. Ela e outras tantas pessoas. Vez ou outra ligava para Mariinha para saber do Enzo. Perguntava se chocolate derretido, depois de reendurecido na geladeira, perdia muito o gosto. “Pelo menos pra brigadeiro há de dar.”
O sol já descia atrás do morro do Dom Bosco quando os automóveis amassagados foram removidos e restou apenas o caminhão. Ela tornou a telefonar, vislumbrando a iminência do triunfo.
– Mariinha, deixa o Enzo na Neusa e vem pra cá. Vem que o ciático não vai me deixar carregar muita caixa. Traz o carrinho de feira. Tá com jeito que vai ser agora. Hein…? A Neusa não tá? Uai… ô diacho… Não, tá bom, tá bom. Levo o que der. Fala com o Enzo que eu vou chegar com chocolate!
Mas a senhora teve de esperar muito mais. Gente ia, gente vinha e nenhum sinal de chocolate para o povo aguando na esquina. A lua já ia alta e o ciático gritava quando apareceu um par de funcionários num caminhãozinho menor para render o outro que ficou vigiando com auxílio da polícia. Os três se puseram a transferir a carga. Umas caixas intactas, outras meio amassadas, mas tudo reaproveitado e acondicionado no bauzinho. E com um vassourão, juntaram o que estava espatifado no chão. Tudo pro lixo.
A senhora inconsolável. O dia todo ali, potencial vitoriosa da prova de resistência, derrotada no último ato. Ligaram o caminhãozinho e foram embora. O caminhão maior lá, ainda virado de eixo pro ar, aguardando o guindaste que só viria no dia seguinte. O único vestígio do alimento outrora venerado pelos astecas e hoje pelas moças em TPM eram as manchas acastanhadas no asfalto.
– Ô Mariinha. Tô voltando. Não deram um chocolatinho, Mariinha. Nem unzinho. Gente ruim demais, Mariinha. Gente sem coração. Gente que só pensa em dinheiro, Mariinha. Esse é o mundo que a gente vive. É só ganância. É cada um pra si mesmo, Mariinha. Hein? O Enzo? Ai meu Deus, é mesmo. Vou passar ali no Bahamas. Hein? Tá doida, Mariinha?! Sabe quanto é que tá custando um Suflair??! Vou levar um Batonzinho e passa a mão no toco!

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