Pequeno horror
Dizem que é bom escrever sobre aquilo que nos atormenta. Senão escrever, compor uma música. Pintar um quadro. Qualquer coisa que, pela artesania, exorcize aquilo que dentro de nós alvoroça. Peço então ao estimado leitor que me permita compartilhar o pequeno horror que presenciei e insiste em fixar-se no vitral das minhas retinas.
Era uma quarta-feira ordinária e eu dirigia pela MG-133, vindo de Ubá para Juiz de Fora, um trajeto que faço regularmente há quase 30 anos. Nos falantes, o último disco de John Mellencamp me fazia companhia. Acabara de atravessar um senhor pé d’água na altura de Tabuleiro quando percebi, numa curva, a dolorosa cena.
Veja, leitor, são três décadas dirigindo por todo canto. De carro já fui ao Paraná e à Bahia, a Goiás e ao Espírito Santo. A Zona da Mata rodo a toda hora, e de ônibus já fui e voltei a Pernambuco. Pouco aflige esses velhos olhos a cena de um bicho morto qualquer no canto da estrada. Seja gambá, tatu, ouriço, gato, cobra ou cachorro, já vi de tudo espatifado, até boi colhido pelo queixo duro de um caminhão. Mas nada se compara a esta visão que não me abandona.
Não foram necessários mais que dez segundos de contato visual para registrar o que agora descrevo. Parecia um montinho de estopa enlameada ao lado direito da estrada, onde a curva fazia linha para a esquerda. Um olhar mais atento, todavia, revelava o vulgar pavor: no acostamento, jazia um filhote de cachorro, muito provavelmente atropelado de pouco. E teria passado despercebida tão comezinha ocorrência não fosse a tristonha figura de uma cadela adulta que, a coisa de metro do pequeno cadáver, montava vigília.
Eram de uma só cor: o cachorrinho morto, a cadela de orelhas caídas e o chão embarreado, de um tom caramelo que contrastava com o céu plúmbeo e a fulgurância verde dos arbustos ao fundo, onde uma cerca delimitava o acostamento e a pastagem. E sobre a estaca da cerca, fazia vulto a figura funesta de um urubu.
Quanto tempo até que outros abutres viessem lhe fazer companhia no velório sombrio? Quanto tempo até que a cadela se desse conta de que o destino do cachorrinho era cabal? Quanto tempo até ser vencida pelo cansaço e pela fome, abandonando em fim sua triste guarda, a estoica cachorra cor-de-barro? A curva, muito aberta e infinita, me conduziu para longe da cena, o quadro tétrico diminuindo no retrovisor direito até sumir na paisagem de chumbo.
Perdoe-me, paciente leitor, por compartilhar com você esse pequeno horror. É que hoje pela manhã, quando manobrava o carro para levar minha filha à escola, ainda vi, no mesmo retrovisor direito, mais uma vez a sinistra cena. A cena que não suporto e da qual quero me livrar. A cena que me faz questionar se aquela cadela conhecia a morte pela primeira vez ou se, conhecendo-a, apenas tentava aceitá-la.