Sem coração


Por Wendell Guiducci

06/11/2018 às 07h00

Era uma vez um lenhador que, apaixonado por uma moça, decidiu que trabalharia ferozmente até conseguir juntar bastante dinheiro para comprar uma casa. Essa era a condição que a donzela lhe impusera para casar-se com ele: que possuísse um teto para os dois. Assim, machado afiado em punho, foi derrubar árvores. Porém, apesar de suas boas intenções, ele estava amaldiçoado: ao tentar cortar um tronco, acabou decepando a própria perna. Não seria problema. O lenhador foi até um ferreiro que lhe confeccionou uma perna de lata e, determinado a comprar a tal casa, retornou ao bosque. A maldição não arrefeceu, e ele acabou cortando outra perna, depois um braço, outro braço, sempre repondo os membros perdidos por metal, até não sobrar carne alguma, nem mesmo o coração. Assim, além do corpo, o lenhador perdeu também a capacidade de amar a donzela, tornando toda sua jornada sem sentido.

O lenhador desta pequena fábula, arguto leitor, é o Homem de Lata de “O Mágico de Oz”. A história de Dorothy e de seus amigos atrapalhados – o Leão Covarde, o Espantalho e o Homem de Lata – é bastante conhecida na cultura popular, serviço prestado pelo cinema e pela literatura, mas o passado de cada um deles é domínio somente de aficionados pelo universo criado por L. Frank Baum no começo do século passado. Afortunadamente, fui tomar ciência, por acaso, da história do Homem de Lata em um congresso acadêmico na última semana. Enquanto o palestrante desenvolvia a narrativa, não conseguia deixar de pensar que o lenhador da fábula é uma antecipação do que viria a ser o homem moderno, esse que, como cantou Ronnie Von, está “atrás do dinheiro, atrás do amor”.

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Ou não nos amputamos toda vez que despinguelamos atrás de fortuna para saciar nossos desejos e necessidades, cujas fronteiras estão cada dia mais indiscerníveis? Para comprarmos a casa e conquistarmos nossa Nimmie Amee – o Google me ajuda a descobrir o nome da pretendida -, topamos qualquer parada. Adoecemos. Cegamo-nos. E na voracidade de atingirmos nosso “propósito”, com “força, foco e fé”, cheios de “determinação” e de “motivação”, passamos por cima de qualquer coisa, inclusive de nós mesmos. Friso: de nós mesmos, reflexivo leitor. Como nosso bem intencionado e insensível herói de metal, perdemos o coração no caminho. Mas ele, além de obcecado, tem em sua defesa o fato de estar amaldiçoado. E nós? Quem seria nossa Bruxa Má do Leste?

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