Cataguases centenária


Por Wendell Guiducci

06/04/2021 às 07h00

O velho chega à casa do irmão ainda mais velho e saca da estante o livro “Cataguases centenária: dados para sua história”, de Levy Simões da Costa. Logo se sentam e começam a conversar enquanto folheiam o volume datado de 1977. As memórias são muitas.
– Aqui os pracinhas, ó. Vou ler os nomes pra você ver se lembra de algum.
– Não, me dá aqui que eu leio.
E lê. E não se lembra. E devolve o livro.
– Não conheço nenhum.
– É porque aí só tem o nome completo, não tem apelido. Certamente muitos eram seus colegas.
– Pode ser.
– Você lembra do Rolô? Foi pra guerra e voltou o dobro do tamanho. Botaram ele de ajudante de cozinheiro.
– O Rolô?
– É. Falou que nunca comeu tanta maçã e tanta pera na vida, que os americanos levavam pra eles. Lá em Cataguases maçã e pera era uma raridade.
Assim ia se desenrolando o assunto, aqui uma foto da rua isso, ali uma da fábrica daquilo, a Cataguases de meados do século passado florescendo sob os dedos dos velhos. As fazendas e as vendas, o barco, o rio, as moças. Fantasmas camaradas raiando das páginas amarelecidas.
No almoço – arroz, feijão, brócolis, inhame, abobrinha, peixe frito, um cálice de vinho, ai que azia! – a prosa fumega, parentes são lembrados, as visitas desejadas e as inconvenientes, os grandes homens e seus feitos, os boêmios, os malandros, os políticos, quase sempre malandros também.
O livro só é colocado de lado durante umas mãos de buraco, os irmãos disputando qual deles nutre maior desprezo por canastras limpas. Ao fim do dia, após o bolo com café, é hora da partida. E o octagenário caçula dispara:
– Mano, posso levar o livro?
O outro, encrespado, vira-se para mim e sobe o tom da voz quase centenária:
– Aí, ó! Tá querendo levar o livro. Fala que vai levar o livro e eu tenho que aceitar? Não, deixa o livro aí. Deixa aí que eu vou ler mais uma vez.
Resignado, o irmão mais novo deposita o livro de volta na estante, despede-se e seguimos viagem. Na subida da Serra de Petrópolis, sentado no banco traseiro, ele questiona, verdadeiramente intrigado:
– Já reparou como algumas pessoas são apegadas às coisas materiais?

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