Vidas perdidas


Por Wendell Guiducci

02/03/2021 às 07h00

O leitor não me leve a mal se peço, pelos próximos minutos, que “esqueça os mortos, que eles não levantam mais”. Roubo o verso de “Negro amor” dos dedos de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti, tradutores de Bob Dylan. Pode parecer insensibilidade deste cronista no país que já perdeu mais de 1% da sua população para um vírus letal e para um governo de ineptos. Ainda assim, peço que esqueçamos, brevemente, somente pelas próximas linhas, as mais de 250 mil vidas perdidas. Concentremo-nos por uns instantes na vida, a vida que os que seguem vivos também têm perdido. Especialmente os jovens vivos.

Tenho pensado especialmente nos adolescentes. Nas meninas debutantes. Nos meninos e seus buços constrangidos. Nesses jovens que mudaram de cidade e não puderam conhecer ninguém, enfurnados em seus quartos. Nos que mudaram de bairro, de escola, e não travaram a deliciosa descoberta das novas amizades, dos novos amores, das novas decepções. Penso nessas pós-crianças com suas caras espinhentas enfiadas na tela azul-mortícia de seus celulares, exercendo ali o que deveriam estar fazendo na pracinha do bairro, na porta do colégio, nas festinhas que são tantas, escola de uma vida que não está nos livros nem nessas redes antissociais.

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Quanta vida perdida nesse longo ano de reclusão? Em seu lugar, a vida mediada por telas: tela para estudar e não aprender, para namorar e não se apaixonar, para falar e não confidenciar. Tenho pensado no cigarro dividido atrás do muro, no amargor da primeira cerveja, no frio na barriga quando a paixonite entra na sala abraçada a seus livros. Quanta vida perdida entre eles, que deveriam ser os mais vivos entre todos os vivos, maremoto de hormônios a bombear o sangue juvenil. Descobrindo o mundo, quebrando a cara, fazendo bobagem. Vivendo, enfim. Mas no lugar da vida, esse arremedo de existência, navegando à deriva na superfície rasa das telas de cristal líquido, olhos zumbificados numa viagem sem destino nem hora pra acabar.

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