Histórias pra contar
Já fazia quase dez anos que ele voltara da guerra civil angolana. Enquanto bebíamos cerveja e preparávamos pratos de guacamole, ele falava sobre como funcionava o rancho no acampamento em que ficava com outros soldados, gente de tudo que é lado do mundo: indianos, argentinos, norte-americanos, canadenses, italianos, alemães, britânicos.
– Inglês só gosta de batata.
Ele falava que, apesar da tragédia humana que testemunhavam, havia momentos de distração. Comer era um deles. Outro era jogar bola.
– Tinha um pretão francês que era o demônio com a bola no pé.
No batalhão instalado nas lonjuras de Kuíto, no coração de Angola, onde não se via um prédio de pé, a rotina dentro do quartel tendia a ser mais tranquila. Só partia o coração ter de olhar as crianças adotadas pelos militares, uma dúzia delas, todas órfãs da guerra. Era triste porque, se aquelas encontraram um lar, ainda que improvisado no meio da guerra, havia centenas, milhares de outras vagando esqueléticas sob o céu poeirento daquela África em ruínas.
– Quem vê a guerra de longe não sabe a tragédia que é.
Porque tem as tragédias pequenas também, de todo dia, contava ele enquanto espremia o limão sobre o abacate, a cebola e o tomate (aprendeu com um mexicano). Como quando flagraram um soldado holandês violentando uma menina de seus doze anos nos arredores de Kunje.
– Batemos tanto nele que o capacete nem entrava na cabeça. Vagabundo. Acho que voltou cego de um olho pro raio que o parta.
Ou de quando um colega voou pelos ares após pisar numa mina a caminho de Huambo. Não morreu, mas deixou na África uma perna e quatro dedos de uma das mãos.
– Ele não chorava não. Ficava só com o olho arregalado, a boca aberta, agarrando o braço da gente enquanto era carregado pro caminhão. Nunca mais dei um passo sem medo naquelas estradas.
Essas as histórias que ele ia contando pra gente na mesa da cozinha. Foi tudo que a guerra lhe deu. Histórias pra contar. Lá pelas tantas, o assunto já era outro, talvez falássemos de cinema, de filmes de guerra, e alguém perguntou:
– E gente, você matou lá?
Ele ficou calado. Evitou levantar os olhos. E disse com a voz pra dentro:
– Disso aí eu não gosto de falar não.