Menina Iemanjá


Por Wendell Guiducci

01/02/2022 às 07h00

Usa um longo vestido azul cerúleo. Na cabeça, uma tiara prateada arranja a vasta cabeleira. Os cachos que restam autorizados contornam o rosto adolescente. O olhar incorrupto denuncia: se atingiu a maioridade, foi por força da vida e não do cartório. O barrigão aponta para sete ou oito meses.
Em movimentos contidos, evolui a Menina Iemanjá na areia molhada de chuva da Praia Vermelha, a manhã espremida entre o Morro da Urca e o Pão de Açúcar. Um rapaz esquálido, câmera na mão, dirige a cena. “Olha pra lá.” “Faz assim com a perna.” “Olha pra barriga.”
Nas ondas que se espraiam a seus pés, ecos da vida que carrega dentro de si. É rainha de seu mar interior.
Atrás da encenação, um menino uniformizado de Flamengo: camisa 8, “Pai do ano”, lê-se às costas. Ao seu lado, olhar algo orgulhoso, algo atemorizado, a consequente avó. Não está sozinha essa quase-virgem cheia de graça que carrega no ventre o fruto dos apetites juvenis.
Registra, para a posteridade, seus últimos momentos de gestante. Em algumas semanas, quem sabe dias, deixará de ser primordialmente filha para se tornar, na vida e no cartório, irreversivelmente mãe. E quem a fotografará nas madrugadas acesas? Estará lá o “Pai do ano”, menino feito homem? E, se estiver, aplacará a invencível solidão de ser abrigo e alimento?
Quem há de coreografar o deita-levanta, a evolução da cama ao berço, a dança sussurrada na madrugada, pé ante pé? Que flashes iluminarão o escuro do quarto quando o cansaço verter em lágrimas? Irá para o Instagram aquele momento fugaz em que a menina reconhecerá, nos olhos impermanentes de sua cria, pela vez primeira o amor retribuído?
Bendita sois vós entre as meninas-mães do Brasil, pequena Iemanjá da Praia Vermelha.

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