Na sua pele


Por Júlia Pessôa

23/08/2015 às 07h00- Atualizada 24/08/2015 às 08h06

Desde nova, como todo mundo, uso a expressão “Não queria estar na sua pele”. Já a emplaquei para amigos flagrados com a cola na mão nos tempos de escola; para quem tinha um prazo apertado para entregar trabalhos longos; para as vezes em que meu irmão ia se estrepar por alguma travessura descoberta. Em todas as fases da vida, sem exceção, achava era muito bom não ter que vestir o couro de quem teria um destino pior que o meu: fosse uma demissão, uma suspensão escolar ou o castigo materno.

Traduzida do egoistês, a expressão quer dizer : “Reconheço que você está numa situação horrível, mas se vira aí, problema seu.” Não sou hipócrita ou doida de esperar que a gente se ponha, de fato, na tez dos outros : “Deixa que eu peço pra ser demitida no seu lugar”, “Diz pro professor que a cola era minha”, “Deixa que eu apanho em vez de você”, “Deixa que eu choro essa perda ao invés de você”. Mas me choca o fato de naturalizarmos tanto a indiferença, de nos tornarmos tão duros em relação aos sofrimentos que não nos pertencem.

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Na última semana, falei com pessoas que têm muito orgulho de estarem na própria pele, e batalham diariamente para serem reconhecidas nela. Gente que abriu mão de empregos, de sonhos e de uma vida menos dolorosa para poder ser quem precisava ser. Homem que ama homem, mulher que ama mulher, Luizão que se tornou Luiza, Mário que se tornou Marina, Tiago que quer usar maquiagem quando lhe der na telha, Ori que não quer ser só ele, nem só ela. Pessoas que passaram e passam por conflitos que a maioria de nós, que está aqui no topo da “cadeia alimentar” social, não consegue entender: porque somos de classe média, heterossexuais e nos identificamos com o gênero em que nascemos (um degrau a mais pra quem, como eu, for branca, por favor). Porque nunca tivemos que desafiar o mundo para conquistarmos a condição mais orgânica de estarmos aqui: nossa existência.

Ouvi histórias de muita privação, de invisibilidade, e de preconceito sim, mas com um senso de otimismo que, diversas vezes, a gente aqui do alto não consegue ter em relação aos perrengues inevitáveis da vida. Sim, estão com a derme esfolada, quase em carne viva, mas é ali mesmo que querem estar, batalhando pra cicatrizar as feridas e evitar novos golpes, a despeito de nossa indiferença. Talvez eu nunca pare de dizer a expressão que livra meu couro em detrimento do sacrifício do alheio, porque, convenhamos: ninguém quer oferecer uma face, muito menos duas (desculpa, Jesus!). Mas espero muito que, daqui em diante, quando disparar um “Não queria estar na sua pele”, eu seja humana o suficiente para acrescentar “Mas posso ajudar a livrar a sua?”.

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