Dama-da-noite


Por Júlia Pessôa

22/12/2019 às 07h00

Essa semana, fazendo meu caminho diário para casa, senti o cheiro de dama-da-noite, que nunca tinha me aguçado as narinas por ali. É impressionante como aromas, apesar de toda a minha rinite alérgica -, me remetem a outros tempos, felizes ou não, como se eu os revivesse. Veio instantaneamente a memória de quando tinha uns 13 anos e a gente se mudou para o BNH do América, em Três Rios, para um apartamento bem menor do que o que passamos minha infância e a de meu irmão inteiras, com três quartos, no prédio mais alto da cidade. No apartamentinho em que eu, minha mãe e meu irmão fomos muito felizes, meu quarto tinha uma parede do chão ao teto com pôsteres do Leonardo Dicaprio muito antes de ele ser ambientalista ou virar meme até ganhar seu Oscar. Meu irmão aprendia (muitas vezes a duras penas para meus ouvidos) os primeiros acordes de violão, trilhando os passos do quese tornaria sua profissão. No caminho até o BNH, tinha uma casa com muro baixo, mas grades altíssimas, que as damas-da-noite chegavam a atravessar, tantas que eram, ficando ali bem debaixo (ou acima) dos nossos narizes na calçada. Era inevitável. Ali, naquele naquele apê bem mais barato do que o que morávamos antes, minha mãe quase não parava em casa. Dava aula em três escolas diferentes, de manhã, de tarde e de noite. Mas era o início de outros tempos, quando ela começou a pagar o lugar onde hoje ela mora, eram tempos cheios de possibilidade.

Também já na vida adulta juiz-forana senti muitas vezes o inconfundível perfume enquanto subia (ou descia? já não me lembro) a Rua Delfim Moreira, um apartamento em que morei e amava, com armários embutidos em literalmente todos os cômodos, o paraíso para quem, como eu, guarda desde ingressos de cinema até uma quantidade assombrosa de livros – os adquiridos, os ganhados e aqueles de estudo, xerocados, porque a grana não dava para comprar o original. Também fui feliz ali, ou talvez infeliz mas vendo outros caminhos para a vida, vivendo num apê grande, fazendo planos de voltar a estudar ou a dar aulas, de tomar as rédeas da minha vida. Passava muito tempo sozinha naqueles cômodos, todo com paredes em tom salmão e um lustre podre de chique na sala que eu morria de medo de quebrar. Mas eu amava estar ali com meus sonhos, que viraram projetos, que viraram ações, que me mudaram a vida.

PUBLICIDADE

Quando passei pela minha rua no início da semana todas essas lembranças fizeram um rápido flashback em minha cabeça. Fiquei pensando que dama-da-noite pra mim tem cheiro de esperança, talvez tenha até dado um sorrisinho diante da constatação. Imediatamente pensei no quanto queria que houvesse um fumacê gigante, para pulverizar esse dama-da-noite pelo país inteiro. Porque em tempos em que o país fede a sangue, dinheiro sujo, violência, laranjal, chocolates duvidosos e podridão generalizada com notas de “milicianismo”, nunca precisamos tanto sentir cheiro de esperança.

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.