Ainda que tardia


Por Júlia Pessôa

22/04/2018 às 07h00

Ainda que tardia

Por coincidência, destino ou sabe-se lá por que, recentemente dois amigos, uma mulher e um homem, vieram conversar fiado comigo, em momentos diferentes, sobre medos. Justo comigo, que tenho medo de cachorro, qualquer manifestação do além, doidos de rua, da morte das pessoas que eu amo, de bichos voadores cascudos, e mais uma série de coisas sólitas e insólitas que poderiam preencher todas as linhas a que tenho direito aqui. E que, ainda por cima, tenho síndrome do pânico, como bem já disse aqui, então sob um gatilho que nem sempre posso prever, posso sentir um medo irrefreável e completamente irracional. Mas eram só conversas, inofensivas, despretensiosas, sobre a vida e seus rumos.

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Fiquei pensando, aguçada pelo papo, sobre o pavor que temos de nos desapegarmos do que entendemos como certezas, convicções e portos-seguros que, na realidade, nem sempre nos acolhem. Empregos, imóveis, amores, quinquilharias que acumulamos ao longo dos anos, papéis, tudo. Entendo que o desconhecido de fato assusta. Mas, cada vez mais ainda que do alto dos meus apenas 32 anos (você que é mais jovem e me lê, respeite minha perspectiva! risos), que a vida é uma só e tem um compasso tão apressado que quando nos damos conta, já é amanhã, já é ano que vem, já se passaram dez, vinte anos. Por que se prender a âncoras que desaceleram ainda mais nossa possibilidade de manter o ritmo?

Ambos os meus amigos, homem e mulher, falaram, principalmente sobre o medo de amar, abrir-se, expor-se, sofrer. Quem sou eu, com meu histórico capenga como o de quase todo mundo nesse planeta, para cuspir verdades sobre amores e relacionamentos. O que sei, e tenho como verdade inabalável, é que o amor próprio é um caminho longo, árduo, difícil, mas também sem volta. E que é o alicerce de qualquer outra forma existente de afeto. Muito antes de eu desfilar invariavelmente com batons coloridos, combinações de roupas questionáveis e cortes de cabelo desconectados, eu preferia ficar na minha conchinha. Migalha por migalha, ao longo de décadas, minha autoestima foi sendo construída e solidificada. Ela é quebrável? Sim. Mas é como disse aos dois amigos, o que quebrar, a gente cola. Fica igual? Não. Mas quem disse que isso é ruim?

Todo mundo já se sentiu feio, já levou um pé na bunda, já se desiludiu com emprego, já se decepcionou com amigo, já teve, por milhões de motivos, o coração partido, em incontáveis de pedaços. Mas o medo é paralisante e evita que a gente renasça e reviva. Talvez por isso tenhamos tanto medo de soltar o que pensamos ser uma corda de salvação, mas que na verdade só nos esfola as mãos. Não tive resposta para meus amigos, como tenho para quase nada na vida. Mas talvez por uma mineiridade adquirida, acredito, em todas as esferas da vida, naquilo que nos promove, por mais difícil que seja alcançar, liberdade. Ainda que tardia.

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